DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

14/09/08

LOULÉ-FUZETA (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

“Atravessei o Guadiana a salto no dia 3 de Fevereiro de 1963”, recorda o grande mestre de cantaria José das Neves Moleiro, 68 anos, na Casa de Pasto Rústica à beira da estrada, em Bordeira, freguesia de Santa Barbara de Nexe. Encontrei-o à frente de um martini às voltas com a memória. “Ao todo, aqui eramos uns cem canteiros e quase tudo abalou primeiro para Cascais e depois para França. A gente não queria nada com a guerra colonial”.
Os dedos da mão de José não chegam para contar os monumentos franceses que ajudou a restaurar: “Em Versailles, logo à entrada, junto às grades, está lá trabalho cá do velho e nas cocheiras também. E se for à Notre Dâme, procure uma estatuazinha pequena na parte de trás do jardim. Fui eu que a restaurei”. Os olhos de José das Neves brilham de orgulho. Por perto, mais tímido, o mestre João Dionísio escuta a conversa de mãos nos bolsos. “E tu João, tu também restauraste muita coisa”, espicaça José. “ Em Paris? A Assembleia Nacional, o Louvre, os Invalides, o Sacré-Coeur... lembras-te do Sacré- Couer, pedra marafada, rija de um raio, mais dura que o ferro...”
Deixei a Bordeira e os canteiros entregues à conversa sobre os futuros museu da cantaria e monumento aos canteiros e fiz-me à imprevisibilidade da estrada: Uma empregada rabujenta numa churrasqueira movimentada- “voltam a deixar entrar clientes depois das três da tarde e abalo daqui...”, uma mirada rápida às ruínas romanas de Milreu, um funeral silencioso em Estói.
Nada me preparara para, na exaustão de final do dia, peregrinar de mochila pesada às costas e olhos inchados, as ruas brancas, encolhidas e intermináveis de Olhão. “Sai da frente piolhoso!”, gritaram umas raparigas em pleno bairro da Barreta, comigo de olhar posto nas açoteias islâmicas, no quadrado das casas, perdido no labirinto de ruelas, pátios e becos.
Vinguei-me no dia seguinte na liberdade da ilha de Armona onde os poucos clientes do café Convívio comentavam o programa da Fátima Lopes: “O que é que a mim me interessa que a moça tenha um pára-brisas mais cheio ou menos cheio? A vida é de cada um. Aquela Maya...ganha uma pipa de massa a dizer mal dos outros”.
De uma ponta à outra da ilha são uns oito quilómetros de dunas, areal, uma ou outra carcaça de barco. O barco que atravessa a Ria Formosa parecia estar ali parado à minha espera para me levar à Fuzeta e a um peculiar duelo França-Portugal de “pétanque” entre os turistas franceses do camping local e os pescadores da zona. “Diz lá à francesa que agora é a minha vez. Você chegue-se para lá que ainda leva com uma bola em cima”. De repente, da tasca mais próxima, soam resquícios de uma discussão: “O quê, o cigano está bêbedo outra vez? Eh, o homem vive provocando...”

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