DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

19/08/10

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NO MINHO

 
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Olá
Interrompi a viagem na Apúlia (Esposende), retomarei a fase final em meados de Setembro.
Abraço a todos
Nuno Ferreira

NO FIM DA LINHA (CLICAR PARA LER NO SITE CAFÉ PORTUGAL)

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Março de 2008. Estava cansado de caminhar pela nefasta EN 125. O trânsito é intenso e sai de onde menos se espera. Viaturas executam manobras perigosas em frente a placas de cores e letras desbotadas a anunciar “tolerância zero” e os cartazes turísticos apelam em inglês a um fantasioso “Allgarve”, uma espécie de terra prometida que um dia gostaria de vir a conhecer. Enveredei por uma viela rodeada de um muro em pedra e desemboquei na estação de caminhos de ferro de Meixilhoeira Grande. Sentei-me. O horizonte prometia um fim de dia, um pôr de sol à Algarve e por ali fiquei. Tive ali pela primeira vez a mesma sensação que viveria em diversas etapas da caminhada, sempre que me encontro junto ao nosso depauperado património ferroviário. Disse para mim mesmo: O Wim Wenders de “Ao Correr do Tempo” ía adorar isto, estas colunas em ferro a enferrujar, o velho relógio que não funciona, o comboio que há-de chegar um dia.
Sentado num dos bancos de madeira verde da estação, ironia das ironias, encontrava-se um alemão. Que sim, que tinha uma boa vida em Colónia mas do que ele gostava era daquilo: O Sol a baixar sobre as linhas e a dourar os carris, as ervas altas a invadir as bermas, os azulejos a menos nas paredes da estação. Tudo o que eu via como desleixo ele observava como algo que mais tarde ou mais cedo está condenado a desaparecer, mesmo num dos países mais meridionais e pobres da Europa.
O comboio, esse, alguma vez tinha de chegar. Arribou a balançar de um lado para o outro e pejadinho de graffitis como o metro de Nova Iorque. Nós estavamos para ali há tanto tempo a gozar o Sol e a conversar com parcimónia- o alemão de sandálias e chapéu de palha em Março- que quase saltámos quando a carruagem veio de Lagos a uma velocidade que dispensa cronometragem. Foi quando, num assomo de stress, vindo de um mundo que exige pontualidade e rapidez, um homem se atirou ao comboio em andamento, agarrado à maçaneta metálica. Eu e o alemão olhámos um para o outro e rimos. Nenhum dos dois estava ali para apanhar o comboio mas apenas para usufruir a paz de uma velha estação em decadência.
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O caminho de ferro em Portugal foi tão negligenciado que se transformou um must para potenciais Wim Wenders, amantes de caminhadas e nostálgicos das linhas de via estreita, como a do Tua ou do Tâmega. A diferença é que em Inglaterra ou na Suíças as linhas de via estreita funcionam em prole do turismo e dos amantes dos caminhos de ferro e aqui são largadas ao vento, à chuva e às intempéries como estandartes do abandono.
Abril de 2008. Parti do Pomarão, num dia tristonho de chuva e o Guadiana enlameado e fiz-me ao que resta da antiga linha de caminho de ferro que ligava as Minas de São Domingos ao rio. Há mais de 40 anos, quando a mina faliu, levaram dali tudo: Os carris, as locomotivas, os vagões. Restavam pedaços calcinados de antigas travessas, os pilares em ruínas das mais de 10 pontes e a tijoleira fantasmagórica dos sucessivos túneis. Lá dentro, procurei imaginar o som estridente das máquinas e a fumaça da Estiphania , a primeira locomotiva mas tudo o que escutei foi o “tac, tac” dos ténis na lama e o “ping ping” que caia das abóbodas. Quando, cerca de 18 quilómetros depois, cheguei às minas, o ex-mineiro António Marciano Barão perguntou: “Veio do Pomarão pela linha com essa tralha às costas?” Fui mas gostaria que um dia turistas a pudessem percorrer entre as minas e o Pomarão.
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A minha peregrinação por Portugal profundo continuou a deparar-se com o fim de uma era de carris e travessas. Ainda nesse mês, avancei até à estação de Serpa/Brinches com intenção de caminhar pelo ramal de Moura. Já uma vez ali tinha estado. É daqueles locais onde só se escuta o som das placas ferrujentas a uivar ao vento, onde o tempo congelou. Apetece sentar e ficar a ver as ervas ondulando à nossa frente. Ao fim de uns 500 metros descobri que as ervas estavam tão altas e cobrindo os carris de tal forma que era impossível progredir...
Em alguns casos, autarquias transformaram pedaços de antiga via em eco-pistas. Numa manhã muito fria e húmida de Fevereiro deste ano, larguei Torre de Moncorvo e atravessei uma boa dezena de quilómetros na antiga linha do Sabor, as nuvens acumulando-se sobre a vizinha Serra do Reboredo, o céu a querer nevar. Noutros casos, como deparei há pouco tempo em Vila Real, pedaços de via estreita confundem-se com pedaços de modernidade. É possível visitar o maior shopping da cidade e antes, percorrer por entre uma mão cheia de prédios, o que resta de parte da linha do Corgo, que ligava a Régua a Chaves.
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Perto de Santa Comba Dão, depois de um périplo pelas margens do rio Dão, fotografei o que resta de uma ponte da antiga linha do Dão e dei comigo a perguntar-me se fotografar o que fica ao abandono no Portugal profundo não será já uma forma de arqueologia? Entre Mondim de Basto e Celorico de Basto, debati-me por entre uns eucaliptos para fotografar a velha ponte que ligava a Arco de Baúlhe. Agora liga a lado nenhum. Paira sobre a estrada, abandonada por Deus, pelos homens, entregue ao acaso.
A mais mediática de todas as velhas linhas é a do Tua. Em finais de Janeiro deste ano, o Douro galgava as margens em tons lamacentos e bravios. Ao longe, no frio luminoso da manhã gélida ouviam-se explosões. Era a EDP que, retirados 1.200 metros de carris da linha de caminho de ferro do Tua, estudava o terreno onde construirá mais uma barragem. Homens morreram a cortar a rocha e a estabelecer nela um patamar para que o comboio chegasse a Mirandela. Foi uma obra épica e dolorosa. Hoje, outros homens encarregam-se de a colocar debaixo de água para que os amantes dos comboios a possam um dia visitar de escafandro. Água, é coisa que não faltava em Janeiro no Rio Tua quando me acerquei das vigas de madeira cobertas de gelo da linha. O rio corria em direcção à foz em tons dramáticos de azul escuro, numa adrelina branca feita de espuma embatendo contra os rochedos. A rebeldia do Tua assemelhava-se a de um animal enfurecido, como um toiro selvagem à espera de um domador experimentado que o faça esfocinhar no pó e na areia. Nada que uma parede de betão bem feita não sustenha.
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Tive para mim toda essa manhã, toda a linha e todo o tempo do mundo, exceptuando as explosões que me obrigaram a contornar a entrada e descer até à linha pelos socalcos em pedra de Tralhariz.
"O que é que você acha?", perguntou-me um velho habitante de Carrazeda de Ansiães. "Aqui já ninguém liga nenhuma à linha, a gente quer a barragem para que haja regadio para as oliveiras. Já pouca gente andava de comboio". Esses, os poucos, agoram andam de táxi, pago por uma companhia de caminhos de ferro.
Larguei a Linha do Tua nas Termas de São Lourenço, outro posto avançado do recolhimento e da tranquilidade. Como já nem o comboio ali pára e os homens se desinteressaram pelas águas sulfúricas que trataram milhares durante anos, São Lourenço é mais um hino ao abandono, especialmente em Janeiro, quando qualquer um pode abrir a porta maciça de madeira e aceder ao tanque maravilhoso. No Verão, ainda se alugam quartos e a junta de freguesia de Pombal cobra dois euros e meio para quem quiser ali tomar banho. No Inverno, São Lourenço está lá para quem sabe, para os nostálgicos e aventureiros.
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À medida que os meus ténis escorregavam nas vigas de madeira geladas, fixei o olhar numa cascata que rompia da montanha do outro lado do rio. As escolas deveriam trazer ali os alunos antes que o cenário acabe. Por mim, cumpri o que prometera a mim próprio, ver a Linha de Caminho de Ferro do Tua e a sua paisagem mas sem escafandro.

A PÉ, NO CALOR (CLICAR PARA LER NO SITE DO CAFÉ PORTUGAL)

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Lembro-me como se fosse hoje. Foi há dois anos. Estava a atravessar o norte do Alentejo por entre povoações desoladas e rectas intermináveis. Nem sequer estavamos no pino do Verão como agora. Corria o mês de Junho. Junto a uma esplanada no centro de Fronteira, distrito de Portalegre, um homem virou-se para mim e perguntou: “Você não é aquele desgraçado que andava ontem a caminhar perto de Avis com este calor?” Não, não era eu. Tinha vindo por Estremoz e Sousel. Mas, disse para comigo, bem que até podia ter sido.
Nesse mesmo dia, num assomo de teimosia, depois de almoçar em casa de pessoas amigas em Fronteira, deixei o arrazoado de casas baixas a dormitar à hora da sesta, do sono, à hora em que nem os animais ousam largar a sombra para me aventurar em direcção a Cabeço de Vide. Para lá de uns pouco eucaliptos, não havia sombras. A dado momento, parou uma viatura com uma família lá dentro: “Olá, não quer boleia?” Que não, que precisava fazer aquilo a pé. Aquilo era uma recta interminável de asfalto quente que só acaba quando, à esquerda, se avista Cabeço de Vide num alto.
Perto de Cabeço de Vide, um grupo de homens asfaltava à estrada. Tudo ali era vapor quente a trepar narinas a dentro, alcatrão a derreter. Os operários ficaram a olhar para mim de boca aberta. Eles, sim, eram obrigados a estar ali. O que motivaria um indíviduo a meter-se à estrada naquelas condições? Até que um gritou: “Homem, saia daí que ainda queima os ténis, venha por aqui”.
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Em dias de canícula, todos os objectivos que tracei para o Portugal a Pé- redescobrir o país, as pessoas, a cultura, o património- se confontam com a dura realidade da caminhada: O asfalto aquece, o sol não dá tréguas e empapa de suor a t-shirt, a água passa a ser o bem essencial e o som de água a correr num qualquer fontanário junto à estrada soa à melhor das sinfonias.
Recentemente, larguei a zona da Régua que devido a uma sequência de dias com 37, 38 graus se transformara num poço sem ventilação. Nem a presença do Douro refrescava aquelas ruas absortas num espesso e pesado manto de calor. Os habitantes moviam-se pela Rua dos Camilos de rostos cozidos e lentidão nas pernas. Viajantes saíam das carruagens de janelas abertas da linha do Douro como se acabassem de deixar um sauna.
À medida que subia a EN222 em direcção a Resende, a perspectiva sobre a Régua ía melhorando, as colinas, os socalcos, as vinhas convidavam à contemplação mas os pés pediam-me que avançasse. Encontrei uma pequena fonte com água onde um camionista, que me olhou de viés, se abastecia. Aproveitei para seguir mas acabei derreado num cruzamento precisamente no Café Cruzamento, em São Gião, a escutar as habituais mas fascinantes histórias locais misturadas com uma resenha das novelas do dia anterior. Ao fim de uma hora, descobri que tinha acabado de beber ali dois litros de água.
A pior caminhada com calor foi na segunda semana de Julho de 2008. Em Gavião, uma brasa seca e calcinante convidava toda a gente a fugir para a Praia do Alamal, no Tejo. Atravessei o rio, alcancei Belver mas acabei em Mação derreado, num dia em que os termómetros marcavam 39 graus.
Nem tudo é mau com calor, no entanto. Uns dias mais tarde, desci a Serra de Alvelos em direcção a Oleiros. Uma ou outra camioneta carregada de madeira descia a inclinacao de dez graus da estrada deserta. Os motoristas lancavam-me olhares de espanto. Parei junto a uma fonte. Aquela hora, umas 14h00, já tinha bebido três litros de água mas precisava de mais para me hidratar e para me molhar. Ali a vista alcancava a Serra do Muradal, a Serra do Acor, a Gardunha, o perfil mais imponente da Serra da Estrela ao longe e, esturricando na planicie, uma mancha branca de prédios a uns 40 quilómetros: Castelo Branco.
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Desci até ao vale de campos de milho e casas de xisto da aldeia de Isna na hora do calor mais intenso. Atravessei carroças de madeira, palha para o gado, um fontanário. Um homem a carregar areia para a construçao de uma moradia indicou-me o Isna Sport Clube Alvelos. Adelino, o barmen e animador das instalacoes, 30 anos de Cometna, na Amadora, recebeu-me de bracos abertos. Ali, a hospitalidade do povo serrano que nas invasões napoleonicas se escondeu na montanha e escondeu o milho, mede-se em minis de cerveja. Cada homem que entrava fazia a mesma pergunta: "E este amigo é quem? Dá-lhe uma mini que pago eu". Acabei com umas 12 minis à frente que tentei pagar ou oferecer. "Aqui você não paga nada, quem é de fora não paga". Até que alguém ganhou coragem e perguntou: "Era você a subir a Serra? Tive pena de si, até lhe queria dar boleia. Está muito calor..."
 
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