DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

08/09/08

JOSÉ BRANCO, VENDEDOR DE BALEIZÃO

José Branco 2

A partir de uma dada altura, para tentar colocar à vontade os desconfiados serrenhos algarvios, ao chegar a um café, além de pedir uma bebida, tirava a máquina fotográfica para fora da mochila, o computador, até que uma pergunta estoirasse: "Então e tu és jornalista? E andas a pé? E não tens medo?" No final, já acabavamos a falar da chuvinha que não servia nem para regar as favas ou da rapariga da localidade que para falar ao telemóvel com o namorado tinha de subir a encosta todos os dias.
Foi num desses cafés que encontrei o grande José Branco, alentejano de Baleizão: "Este pessoal? Desconfiam de tudo..." Dito e feito. Na próxima povoação, disse alegremente "boa tarde" à primeira pessoa que encontrei. Resposta sumida e de olhos no chão: "B'tarde..."

MONTE RUIVO

Monte Ruivo 6

Em Monte Ruivo avistei um rebanho de ovelhas a pastar junto à baliza do campo de futebol. Infelizmente, quando lá cheguei, elas e o respectivo pastor, já tinham encetado uma peregrinação pela encosta. Para chegar ao campo, tive de passar numa rua de casas baixas e brancas. Uma mulher ía a saír de casa, viu-me, escapuliu-se para dentro de portas. Quando voltei, tinha-se juntado a outra no lavadouro, as duas a observar-me em silêncio. Dessa vez, não me contive: "Oh minha senhora, está desconfiada, chame a guarda!"

ZAMBUJAL

IMG_5046
Depois de descer desse ninho de hospitalidade chamado São Barnabé e passar por mais uns montes em ruínas, avistei ainda da estrada em terra batida, um bonito vale repleto de laranjeiras com meia dúzia de casas. Como sempre, sonhei em parar num café. Primeiro, de uma casa a desfazer-se, surgiu um homem que parecia saído de "Voando Sobre Um Ninho de Cucos" e que me seguiu silenciosamente, com o olhar, até eu desaparecer.
No cimo de uma rampa, vi três mulheres. Corri a perguntar para que lado era Alte. Uma delas agitou a mão como a enxotar uma galinha e disse: "p'ra ali, p'ra ali!"

NA SERRA DO CALDEIRÃO (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

IMG_5036

São sete horas de uma tarde chuvosa. A noite já caíu em São Barnabé, concelho de Almodôvar, posto avançado da civilização na Serra do Caldeirão. Nesse dia perfiz horas de caminhada, inclinado nas subidas com a maldita da mochila feito sherpa do Tibete, entre ruínas de montes abandonados, urze, estevas, medronheiros, sobreiros, hastes de oliveiras queimadas, as curvas cortadas no xisto e em terra batida sucedendo-se umas às outras. O último sinal de vida fora em Fonte de Ribeiro, um tipo encavalitado numa Famel-Zundapp a desfazer-se e a perguntar: “Então e nem uma bicicleta tem?”
Agora, calcorreio ruas brancas e vazias a perguntar-me o que fui para ali fazer. Trepo uma ladeira. De repente, uma luz. Uma serrana espreita e fecha a porta. Outra surge na esquina como uma miragem mas quando lá chego já não está lá. Entro num café a meia luz de uma velhinha, um idoso imovível a um canto a olhar para mim como uma câmara de video-vigilância. “O que quer o senhor?”, “é de onde?”. Sento junto à porta e ouço-as a coxixar junto à lareira: “é de Lisboa...”
Hora e meia mais tarde, sou resgatado por um taxista de Almodôvar, mais de trinta quilómetros a norte: “Uh, aquilo ali é gente muito fechada, vivem para ali isolados, têm medo da própria sombra”.
Dia seguinte, regresso a São Barnabé para descer a serra: “Você não esteve cá ontem? Então porque é que não começou a caminhar lá mais em cima?” No vale verdejante de Zambujal peço informações a uma mulher que correra rua acima: “É sempre em frente, sempre em frente...”, diz, a mão como que a enxotar uma galinha.
Ali, uma fotografia a um poço, a uma porta, o simples gesto de mexer nos bolsos é seguido à distância. As mulheres reunem-se no cimo da rua à minha passagem a comentar e desvanecem-se quando me viro para trás. Num café em Monte Ruivo, um homem de chapéu preto e abas retorcidas explica: “Com a gatunagem que anda aí, não é de ter medo?” A dona corrobora com um aceno da cabeça. Desconfia de potenciais larápios, da ASAE e dos funcionários da empresa intermediária HISA (Higiene e Segurança Alimentar) que passam ali regularmente para lhe exigir que mude o gelo ou altere algo no balcão. “Pago 70 euros para verificarem tudo mas nunca estão satisfeitos...”
Sou salvo dali pela carrinha de José Branco, 42 anos, jovial vendedor alentejano nascido e criado em Baleizão: “Isto é meio mundo a roubar meio mundo...”. Partiu de Beja naquele dia e por sua vontade, ia dormir de novo lá acima: “Já o meu pai não gostava dos algarvios que íam para lá trabalhar na ceifa. São desconfiados. Eu só ando aqui porque a vida está péssima e temos de ir a todo o lado a ver se vendemos alguma coisa”.

SÃO BARNABÉ

IMG_5024

Subi a Serra do Caldeirão com a mente fixa em São Barnabé, uma minúscula povoação de serrenhos que já pertence ao concelho alentejano de Almodôvar mas não é nem Algarve nem Alentejo, é serrenho. Há muito tempo que os habitantes dali se acostumaram a viver isolados e a falar "lá no Algarve..." Bem que os últimos habitantes, todos entre os 70 e os 80, podem também falar "lá no Alentejo...". São Barnabé, a 36 quilómetros de Almodôvar, fica longe de tudo.
Para piorar as coisas, cheguei já noite escura e sob chuva. As portas fechavam-se quando me viam passar. Não havia rede de telemóvel. Felizmente, descobri uma cabine telefónica. Enquanto esperei que um táxi me viesse tirar daquele buraco, fiquei, vestido com o meu fato impermeável que me transmitia ar de astronauta, na mesa do único café aberto. Um idoso não tirava os olhos de mim enquanto escutava o sussurrar de duas velhas, encolhidas numa cozinha, junto a uma lareira: "Diz que é de Lisboa, eu não sei..."

SÃO BARNABÉ EM HORA DE PONTA

IMG_5013

SÃO BARNABÉ

IMG_5010

FOZ DE ODELOUCA-SÃO BARNABÉ

IMG_4986
Oito quilómetros cheios de nada, só solidão.

FOZ DE ODELOUCA

IMG_4975

Subi e desci a Serra do Caldeirão desde Foz do Ribeiro para encontrar outra povoação semi-deserta, Foz de Odelouca. Ao todo, vi umas cinco pessoas. A aproximação aos montes e casas é feito ao som do ladrar dos cães. Ali ninguém usa alarme, o alarme são os cães quase sempre acorrentados. Toda as pessoas no vale ficam a aperceber-se da minha chegada devido a eles. Só se calam depois de desaparecer na curva final.

SERRA DO CALDEIRÃO

Fonte de Ribeiro-Ribeira de Odelouca 3

A serra em todo o seu esplendor. Ali não há vivalma, além de hastes queimadas e um ou outro monte abandonado.

SUBIDA DESDE FOZ DO RIBEIRO

Fonte de ribeiro 4
A única povoação de nome desde Messines fora Foz do Ribeiro. Comecei a subir a Serra do Caldeirão. As casas lá em baixo é essa metrópole rural Foz do Ribeiro.

FOZ DO RIBEIRO

Fonte de Ribeiro

Foz do Ribeiro foi a primeira povoação digna desse nome que apareceu no meu trajecto Serra do Caldeirão acima. Entrei num café, pedi uma cerveja e vi a dona do estabelecimento entregar-me a garrafa à distância, o olhar entre o desconfiado e o receoso. Um homem de aspecto doente e alcoolizado vigiava-me à distância. Deixei-me ficar a beberricar a cerveja numa espécie de esplanada rural, enquanto homens íam e vinham, parando Famel-Zundapps ou carrinhas de porta aberta. A atmosfera só degelou quando expliquei que era jornalista. "Minha senhora", expliquei, "tem de desconfiar é de quem aparece aqui de fato e gravata a querer vender-lhe alguma coisa". A dona, a mão no rosto: "Ai, mas a gente nã sabe...ainda por aí tanta gatunagem..."
Fiel aos seus princípios, o cão na foto nunca largou as suas cabras enquanto não me viu passar. Já no fim da aldeia, um agricultor: "Atão mas nem bicicleta tem?"

MESSINES

IMG_4915

Por baixo deste viaduto acaba São Bartolomeu de Messines e começa a minha travessia da Serra do Caldeirão.

ESTRADA PARA MESSINES

IMG_4827

ESPANTALHO NA ESTRADA PARA MESSINES

IMG_4822

LARANJAS NA BERMA

IMG_4816
Tal como em trechos da EN125, tal como em plena Penina, onde as árvores do complexo quase invadiam a estrada, andar aqui é muito difícil. É preciso estar sempre de olho no próximo carro e dar sinal da minha presença. A maioria afasta-se mas há sempre um que gosta de mostrar que a estrada é dele.

SILVES-SÃO BARTOLOMEU DE MESSINES

silves-messines 3

NORINHA

taberna da norinha 4

TABERNA DA NORINHA POSTA EM SOSSEGO

taberna da norinha 2

E o Algarve do turismo ali tão perto.

PAULO DUARTE, 31 ANOS, PASTOR, TABERNA DA NORINHA, NORINHA

pastor 4

Continuo a achar que o Paulo Duarte me faz lembrar aquelas fotos dos cowboys solitários do Wyoming. "Também já trabalhei na construção", contou-me o Paulo, um cigarro atrás dos outros, "mas aqui no campo é que eu gosto de estar".
pastor 3
pastor 2

SILVES

IMG_4749

07/09/08

TURISTAS

IMG_4683

RUI, O ACORDEONISTA CEGO

IMG_4674

É época-baixa mas Rui, o acordeonista cego, não pára de tocar. Só o tilintar das moedas o faz interromper a melodia: "Obrigado, thank you, gracias..."

CASTELO DE SILVES

IMG_4663

Eu a fazer tudo para a fotografar e a turista a escapulir-se. A parte central do castelo estava em obras, a maioria dos operários brasileiros. Um capataz refilou: "Os brasileiros que reparem aquela merda ali atrás". Depois, urinou junto a uma palmeira acabada de plantar.

SILVES (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

Chegara a Silves- a pré-histórica, a romana, a mourisca, ex-capital do Algarve e da cortiça, pela ponte velha- um pé elástico na perna direita, a mochila aos bamboleios, o cabelo em desalinho, irritado com a corrida insensata das viaturas contra os sinais de abrandamento da velocidade. Procurara abrigo numa tasca tristonha a tempo de assistir a um indivíduo de plástico na cabeça a saír de garrafa sumol cheia de vinho branco debaixo do braço. “Aguardente de medronho?”, perguntara-me a dona em azedume, “isso é muito caro. Você não vai querer pagar dois euros pela aguardente...e só posso encher até aqui”. Marcou um risco com os dedos. “E vá lá que eu quero fechar...”
Depois de cirandar pelas ameias cor de chocolate do castelo e de escutar Rui, o acordeonista cego, umas cisternas e alguns achados arqueológicos mais tarde, uma visita apressada às cavalariças onde funciona a GNR local, perguntara-me o que seria preciso para alguém reparar o telhado da Sé. “Está todo desdentado. A câmara não tem dinheiro, o Estado diz que também não. Quando caír uma telha em cima de um turista estrangeiro a ver se não aparece o dinheiro”, comentava uma residente.
Farto de ouvir falar em doenças, nos últimos três falecidos na cidade e na meia da Madeleine Mcain “encontrada” na Barragem do Arade, bati em retirada de um café e refugiei-me na barbearia do Chico “Cadela”, um pedaço da velha Silves incrustado na cidade dos turistas: “O meu primeiro mestre foi o Joaquim Baião, o segundo foi o Tomé Calhau. Sou do tempo em que Silves tinha 16 barbearias, quatro equipas de futebol e muita cortiça. Trabalhava as manhãs e as tardes”. Agora, ninguém para cortar o cabelo a cinco euros ou fazer a barba a três. “Vai tudo às cabeleireiras. Já me aborrece isto. É uma vida marafada”.
Deixo Chico, aliás Francisco António, 67 anos, nascido na freguesia rural de Falacho, entregue às inquietações de barbeiro solitário- “ estou sózinho, elas só querem dinheiro”- e faço-me aos 17 quilómetros de laranjais que separam Silves de São Bartolomeu de Messines, por entre bermas quase inexistentes ou cobertas de arbustos. Escala: Taberna da Norinha, em Norinha, onde o pastor Paulo Duarte, 31 anos, enrola tabaco numa mortalha e assume as despesas da conversa. “Já trabalhei na construção mas aqui é que eu gosto de estar, no campo. Não gosta do campo?” Compro uma mini e deixo-me ficar sentado, na esplanada da Taberna da Norinha, observando os carros atravessam apressadamente a EN24 em demanda de Silves e a civilização. “Em ficando aqui, eu mostro-lhe as minhas ovelhas”, promete Paulo, o pastor.

CHICO CADELA

barbeiro 18

"Silves dantes era a capital do Algarve", conta-me o Chico "Cadela", o último dos barbeiros, "a gente vinha do campo e aprendia a profissão ou de sapateiro ou marceneiro". O negócio da cortiça abalou de Silves, agora só mesmo os turistas. "Uma vez cortei o cabelo a um mas...qualquer dia vou deixar isto. Morreu a minha mãe, morreu o meu irmão que também era barbeiro e eu para aqui solteiro, sem ninguém, aos 67 anos.
Antes de fechar, Chico ainda tem planos de colocar um tecto novo, rebocar as paredes. "As cadeiras são do meu irmão, os espelhos são dele também. Ai, já me aborrece isto..."

SILVES

silves sinal

SILVES

silves rua 2

ROUPA A SECAR

silves rua

SILVES ANTIGA

silves +

SILVES

silves 4

TURISTAS NA VELHA SILVES

silves 3

CONTRATEM ESTE ACORDEONISTA

silves 2

ANDAM TODOS POR AÍ

IMG_4598

SILVES, A MOURISCA

IMG_4592
Cansado de tanta monotonia de asfalto, atravessei um túnel e de repente, do outro lado, Silves, a mourisca ali a meus pés.

LAGOA-SILVES

IMG_4590

A estrada que liga Lagoa a Silves é só asfalto e betão. Viaturas a circular em velocidade junto a sinais de 50, as janelas fechadas, pedais a fundo. Muitos automobilistas observavam-me com estranheza. Um idoso conduzindo uma carrinha insistiu em querer a berma para ele e quase me obrigou a trepar as ervas. Valeram-me os laranjais de um e do outro lado da estrada.

A EN 125 VISTA DO VIADUTO QUE LEVA A SILVES

IMG_4588

LAGOA-SILVES

IMG_4583

LAGOA

IMG_4563

ESTAÇÃO DE CAMIONAGEM DE LAGOA, MARÇO DE 2008

estaçao camionagem Lagoa 2

EM TRÂNSITO

estação de camionagem Lagoa

Andava a cirandar junto à estação de camionagem de Lagoa quando dei com esta solitária em trânsito de traços eslavos. Mais tarde, procurei fotografar um grupo de dreads locais que se vinham a aproximar da estação mas tudo o que consegui foi o comentário: "Basa brasileiro!"

VELHARIAS PARA TURISTAS CHAMA-SE "ANTIQUES"

lagoa 2

EN 125

Lagoa

ACORDEONISTA

publicidade Lagoa
Mas quantos acordeonistas existem no Algarve?

A NOSSA SENHORA DE FÁTIMA VISITA O PARCHAL

parchal

RUA DE PORTUGAL, PARCHAL

rua Portugal Parchal

PARCHAL

parchal 3

PARCHAL

parchal
 
Site Meter