DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

08/09/08

NA SERRA DO CALDEIRÃO (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

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São sete horas de uma tarde chuvosa. A noite já caíu em São Barnabé, concelho de Almodôvar, posto avançado da civilização na Serra do Caldeirão. Nesse dia perfiz horas de caminhada, inclinado nas subidas com a maldita da mochila feito sherpa do Tibete, entre ruínas de montes abandonados, urze, estevas, medronheiros, sobreiros, hastes de oliveiras queimadas, as curvas cortadas no xisto e em terra batida sucedendo-se umas às outras. O último sinal de vida fora em Fonte de Ribeiro, um tipo encavalitado numa Famel-Zundapp a desfazer-se e a perguntar: “Então e nem uma bicicleta tem?”
Agora, calcorreio ruas brancas e vazias a perguntar-me o que fui para ali fazer. Trepo uma ladeira. De repente, uma luz. Uma serrana espreita e fecha a porta. Outra surge na esquina como uma miragem mas quando lá chego já não está lá. Entro num café a meia luz de uma velhinha, um idoso imovível a um canto a olhar para mim como uma câmara de video-vigilância. “O que quer o senhor?”, “é de onde?”. Sento junto à porta e ouço-as a coxixar junto à lareira: “é de Lisboa...”
Hora e meia mais tarde, sou resgatado por um taxista de Almodôvar, mais de trinta quilómetros a norte: “Uh, aquilo ali é gente muito fechada, vivem para ali isolados, têm medo da própria sombra”.
Dia seguinte, regresso a São Barnabé para descer a serra: “Você não esteve cá ontem? Então porque é que não começou a caminhar lá mais em cima?” No vale verdejante de Zambujal peço informações a uma mulher que correra rua acima: “É sempre em frente, sempre em frente...”, diz, a mão como que a enxotar uma galinha.
Ali, uma fotografia a um poço, a uma porta, o simples gesto de mexer nos bolsos é seguido à distância. As mulheres reunem-se no cimo da rua à minha passagem a comentar e desvanecem-se quando me viro para trás. Num café em Monte Ruivo, um homem de chapéu preto e abas retorcidas explica: “Com a gatunagem que anda aí, não é de ter medo?” A dona corrobora com um aceno da cabeça. Desconfia de potenciais larápios, da ASAE e dos funcionários da empresa intermediária HISA (Higiene e Segurança Alimentar) que passam ali regularmente para lhe exigir que mude o gelo ou altere algo no balcão. “Pago 70 euros para verificarem tudo mas nunca estão satisfeitos...”
Sou salvo dali pela carrinha de José Branco, 42 anos, jovial vendedor alentejano nascido e criado em Baleizão: “Isto é meio mundo a roubar meio mundo...”. Partiu de Beja naquele dia e por sua vontade, ia dormir de novo lá acima: “Já o meu pai não gostava dos algarvios que íam para lá trabalhar na ceifa. São desconfiados. Eu só ando aqui porque a vida está péssima e temos de ir a todo o lado a ver se vendemos alguma coisa”.

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