DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

03/02/10

EM TRÁS-OS-MONTES

 
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Em fins de Janeiro, o Douro galga as margens em tons lamacentos e bravios. Os poucos resistentes que vivem junto à Estação do Tua, esperam pelo Verão, pelos passeios de barco ou entregam-se à labuta nos socalcos que trepam as colinas em direcção a Carrazeda. Soltado de uma ou outra chaminé, um fumo melancólico e frio diz-me que por ali, entre pequenas casas dependuradas sobre o rio, hortas e gatos furtivos, ainda alguém enfrenta o Inverno, a crise e o resto. Toda a gente sabe que uma derrocada cortou a linha de caminho de ferro entre o Tua e o Pocinho. A CP não repôs o tráfego e envia os passageiros que saem do comboio da Régua por volta das 16h00 em camionetas, pois claro, que o país está é para o asfalto, a camionagem, as vias rápidas e sobretudo para o cimento, muito betão. Se a derrocada por lá ficar, tanto melhor, já não havia comboio entre o Pocinho e Barca de Alva, que se lixe o trecho Tua-Pocinho.
No mais movimentado restaurante junto à gare, onde deveriam confraternizar ferroviários vindos do antigo bairro da CP, hoje praticamente ao abandono, ruidosos operários devoram entrecosto e beberricam tinto depois de um dia trabalhoso. Há quem esteja a trabalhar na renovação da ponte sobre o Tua. Outros são funcionários da EDP, contratados para avançar com a nova barragem. Ao longe, no frio luminoso da manhã de Janeiro, ouvem-se explosões. É a EDP que, retirados 1.200 metros de carris da linha de caminho de ferro do Tua, estuda o terreno onde construirá mais uma barragem. A linha, essa, foi fechada desde o trágico acidente. Se não tivesse existido acidente, teria havido uma derrocada. A CP desinteressou-se das linhas de via estreita há muito, mesmo que a paisagem avistada das janelas das carruagens seja de suster a respiração.
Homens morreram a cortar a rocha e a estabelecer nela um patamar para que o comboio chegasse a Mirandela. Foi uma obra épica e dolorosa. Hoje, outros homens encarregam-se de a colocar debaixo de água para que os amantes dos comboios a possam um dia visitar de escafandro. Água, é coisa que não falta no Rio Tua quando me acerco das vigas de madeira cobertas de gelo da linha. O rio corre em direcção à foz em tons dramáticos de azul escuro, numa adrelina branca feita de espuma embatendo contra os rochedos. A rebeldia do Tua hoje é a de um animal enfurecido, como um toiro selvagem à espera de um domador experimentado que o faça esfocinhar no pó e na areia. Nada que uma parede de betão bem feita não sustenha. Ele que venha que estará lá a barragem para o sustentar. E os Paul Theroux e Michael Palin de trazer por casa que vão para a Suíça brincar aos comboios antigos. Portugal está virado para o século XXII, para o futuro. Os tempos que correm não se compadecem de romantismos eco-turístico-ambientais.



À medida que os meus ténis escorregam nas vigas de madeira geladas, fixo o olhar numa cascata que rompe da montanha do outro lado do rio. As escolas deveriam trazer aqui os alunos antes que o cenário acabe. Por mim, já cumpri o que prometera a mim próprio, ver a Linha de Caminho de Ferro do Tua e a sua paisagem mas sem escafandro. Tenho para mim toda a manhã, toda a linha e todo o tempo do mundo, exceptuando as explosões que me obrigaram a contornar a entrada e descer até à linha pelos socalcos em pedra de Tralhariz.
"O que é que você acha?", pergunta-me um velho habitante de Carrazeda de Ansiães. "Aqui já ninguém liga nenhuma à linha, a gente quer a barragem para que haja regadio para as oliveiras. Já pouca gente andava de comboio". Esses, os poucos, agoram andam de táxi, pago por uma companhia de caminhos de ferro, a mesma companhia que paga as camionetas entre o Tua e o Pocinho. A CP não mudou de actividade, apenas defende a velocidade de Bruxelas, do pelotão da frente, a mesma que vai passar ali perto no novo troço da A24. Dá vontade de dizer: Depressa e rápido rumo ao desenvolvimento. Não se estampem!
Largo a linha nas Termas de São Lourenço, outro posto avançado do recolhimento e da tranquilidade. Como já nem o comboio ali para e os homens se desinteressaram pelas águas sulfúricas que trataram milhares durante anos, São Lourenço é mais um hino ao abandono, especialmente em Janeiro, quando qualquer um pode abrir a porta maciça de madeira e aceder ao tanque maravilhoso. No Verão, ainda se alugam quartos e a junta de freguesia de Pombal cobra dois euros e meio para quem quiser ali tomar banho. Nesta altura do ano, São Lourenço está lá para quem sabe, para os nostálgicos e aventureiros. A barragem, essa, poupará magnânime, as Termas de São Lourenço, valha-nos isso. Pode ser que um grande grupo económico as compre e promova passeios de barco aos reumáticos...
A solidão invernal transmontana, mesmo combatida com doses vigorosas de posta mirandesa, atinge-me tal qual o vento frio do planalto mal larguei os socalcos do Douro. Em residenciais, é normal deparar com um papel colocado na porta com números de telefone: "Se não encontrar ninguém , favor ligar para..." Em Carrazeda de Ansiães, cirando de mochila às costas por um fantasmagórico complexo hoteleiro. Ninguém por ali, entre jardins com estatuetas e um parque de estacionamento vazio. Quero ligar para o telemóvel que colocaram na vidraça mas esqueci-me de o carregar. Aparece-me uma vivalma. "Que é que tu queres? Um quarto? Liga...Não tens dinheiro no telemóvel, se não tens dinheiro queres dormir aqui?'Pera aí que eu ligo: "Oh Senhor Manuel, está aqui um senhor que quer um quarto. Que lhe digo? Chamo a empregada?".
Lá aparece uma mulher saída do nada, de um corredor vazio. Dá-me uma chave sob os pedidos insistentes do cliente que me ajudara: "Ouça, diga às suas amigas que são sempre benvindas, tá bem? E traga-nos uma cervejinha de vez em quando..."
No dia em que largo Carrazeda, tenho de bater no vidro para chamar uma mulher que aparece e desaparece lá ao fundo, na cozinha. "Quem é o senhor? Quer pagar? Mas o senhor dormiu aqui duas noites? Ai o senhor Manuel, o que vale é que o senhor é honesto. Aqui há tempos houve uns que foram embora sem pagar e até se serviram aqui da cozinha..."
Enfrento uma desolada estrada entre Carrazeda e Vila Flor para encontrar uma situação semelhante no hotel da próxima vila. Dessa vez, leio os números de telefone afixados mas aproveito o facto da porta estar aberta. Toco em vão à campaínha, bato ao balcão. Rien de rien. De repente, surge esbaforida uma empregada de limpeza: "Quem é o senhor? O que quer? Ai a porta estava aberta? Lá deixou aquela mulher a porta aberta. E que quer o senhor? Um quarto? Vamos a ver, é que a patroa não está...Tocou? Bem podia tocar, eu estava com a máquina a funcionar..."
Vila Flor encolhe-se de frio, entre conversas sobre as partidas de futebol da véspera quando avanço em direcção a Torre de Moncorvo. Ouve-se tiros de caçadeira ao longe. Dois homens param uma carrinha para inspeccionar um campo de oliveiras. Param para me observar: "Anda à procura de trabalho? Resmungo qualquer coisa e sigo entre amêndoas do ano anterior que ficaram nas árvores e pequenas plantações de oliveiras. Saúdo um amendoeira precoce que parece querer rebentar antes do tempo.
Na encruzilhada da N215 com a IP2, carros repletos de famílias viram para Junqueira, uma aldeia colocada de forma estratégica entre Bragança e Macedo de Cavaleiros e o sul, Moncorvo, Foz Côa. Aperta-se-me o estômago de fome. Dois homens e um rapazote tímido ficam a ver-me chegar às imediações do Café Restaurante e Dormidas Abade, um oásis num deserto de solidão. "Então não arranjas boleia?", pergunta-me o homem mais atrevido. "Ah, andas a pé...Tive cá um rapaz que era de Lisboa também, era arrumador de carros. Era sério, honesto, trabalhador, também andava de mochila como tu. Um dia, car..., chateou-se comigo por causa do futebol, veja lá..."
Com o palpite dos audazes, observo o rosto do aldeão cinco, dez segundos. "Já sei, você é portista!" O homem encolhe-se: "E que mal tem..." Eu e o rapazote do lado sorrimos. Somos ambos do Benfica.

DOCEIRA, TORRE DE MONCORVO

 
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"Moncorvo tinha doceiras
Alegres e divertidas
Honradas e trabalhadeiras
Que não podem ser esquecidas


As doceiras vão acabando
Nas festas não se vêem mais
Mas é bom ir recordando
Coisas que eram boas demais"

J. M. Remondes (copiado do blog Torre de Moncorvo In)

"OS POBRES FICARAM RICOS E OS RICOS POBRES"

 
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Quando o comerciante, ex-lavrador, ex-operário fabril e artesão António "Farinhas", aliás António Poço, 75 anos, chegou a Torre de Moncorvo vindo de Vale da Madre, Mogadouro, na vila existiam muitos pobres e meia dúzia de proprietários rurais. "Vim em 1961 para trabalhar no depósito de farinhas das Moagens de Bragança. Em relação a Mogadouro, Moncorvo era uma cidade autêntica. Havia meia dúzia de ricos, donos das quintas. Os pobres emigraram. Os pobres enriqueceram, compraram prédios, os ricos ficaram na mesma. Agora, até os que emigraram estão mais pobres porque querem vender os prédios e não conseguem".
António, que vende artesanato juntamente com frutas e legumes junto da Igreja, nunca emigrou mas viu muitos "compadres" partirem para a França. "Agora andam cá e lá, têm lá os filhos, vão e vêm nessas carrinhas que os levam até lá. As estradas são boas".
As mãos de António, essas, nunca pararam. Primeiro no campo, em Mogadouro, depois na moagem, mais tarde no artesanato, até hoje. "Esses carros com os bois que faço em madeira são a cópia dos carros com que trabalhava em Mogadouro. A careja e o feno eram levados em molhes nesses aí. Nos carros dos cestos ía já o pão..."
 
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Um dia António e a mulher decidiram deixar Mogadouro e fixar-se na promissora Torre de Moncorvo. "A minha mulher vendeu, quase que deu, as vacas e mulas na feira de Mogadouro e viemos". Trabalhou 12 anos no depósito das Farinhas. "Já desenhava nessa altura, desenhava a lápis, as mãos cheias de farinha". Em 1961 desenhou a Torre. "Nessa altura não havia postais nem nada para os turistas como agora".
Ao fim de 12 anos, abriu a loja, ainda com gente, compradores. "Vendia 200 pães cozidos, vendia frango vivo e frango morto, tudo depenado à mão, aos fins de semana. Os que matassemos eram os que vendíamos. Levantavamo-nos às três da manhã para trabalhar".
 
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A emigração levou muita gente que mais tarde passou a aparecer para construir casas novas ou para comprar na loja de António jarros, garrafas de vinho, bonecos. "Levavam para dar aos patrões. Agora já não levam nada", comenta sempre bem disposto. "Isto foi morrendo. Hoje Mogadouro cresceu, Mirandela era umas ruelas junto à parte velha e agora é uma cidade. Isto aqui parou".
Só não pararam as mãos de António Poço que passou a trabalhar em madeira espingardas, chegas de bois, cenas de caça, carros de bois e até...a imagem da Torre, ex-libris da vila. "Não paro, hoje à noite tenho de mexer naquela peça ali, precisa de realçar as figuras, não estou satisfeito com ela..."
 
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"SÓ PUBLICAVAM NOTÍCIAS SOBRE O DESPORTIVO DE MONCORVO"

 
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João Girão com uma edição do jornal local "Sabor do Ferro", distribuído de mão em mão por Torre de Moncorvo

"A migração não é voluntária", explica José Girão, no interior do bar que mantem juntamente com o irmão João em Torre de Moncorvo. "Se não tivesse este bar e não tivessemos lançado agora o jornal ("Sabor do Ferro"), provavelmente não estaria aqui". Os irmãos Girão mantêm desde o Verão passado um bar com música ao vivo todas as sextas-feiras numa região pobre em actividades do género, têm uma banda, Os Myula (http://www.myspace.com/myula) cujo primeiro disco está quase pronto e um jornal local que vem preencher uma lacuna local: "Mesmo na imprensa regional, Torre de Moncorvo só era notícia quando o clube da terra jogava".
João e José Girão, ambos naturais da povoação mas formados fora de Torre de Moncorvo, são um caso de transmontana teimosia. José, por exemplo, formado em comunicação e relações públicas atira-se a tudo o que mexa desde que seja na região: "Já fui delegado comercial numa rádio da Guarda, já colaborei com a LOCAL TV de Vila Real, com o "Terra Quente" e há tempos soube que havia um local de transcriptor no tribunal, inscrevi-me". Tudo para ficar na região: "É a minha terra..."
A construção da Barragem do Baixo Sabor deu emprego mas o que acontecerá quando terminarem as obras? "Não havendo trabalho, vai tudo embora daqui. Naquela mesa, por exemplo (estamos no bar dos irmãos Girão) estão um geólogo, um economista e uma assistente social, todos desempregados..."
Ficar em Torre de Mocnorvo é um acto de resistência. "Os sucessivos governos só vêem o litoral á sua frente. Com a regionalização, sempre olhariam de outra forma para Trás-os-Montes. O TGV, por exemplo, em vez de nos ligar ao exterior, porque não liga Portugal de lés a lés?", desabafa José Girão.
 
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