DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

04/03/09

PARADO NO LUSO

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Ponte de Treixedo, antiga linha do Dão, 26 de Fevereiro de 2009

Nesse já longínquo dia de 23 de Fevereiro de 2008 Sagres repousava ao sol do fim da tarde, uns surfistas molhando os pés na água serena que brincava aos vai-vens em frente a turistas beberricando vinho branco à espera do pôr do sol do fim da Europa. Eu vertia nervosismo, transportava roupa a mais, sonhos a mais, peso a mais. Ao fim de dois quilómetros em direcção ao Cabo de São Vicente, comecei a penalizar-me por não me ter preparado fisicamente. Tive de despir parte da roupa, tinha calor e acabei a beber uma imperial num restaurante cheio de animais empalhados que só ao fim de meia hora descobri pertencer ao ex-presidente do Sporting Sousa Cintra. O empregado foi o primeiro a saber o que me levara ali: Atravessar Portugal a pé.
A partir daí, as coisas foram se encaixando, o que parecia um absurdo e teimosia ganhou forma, à medida que a primeria chuvada caíu, que a sensação infinita de liberdade de atravessar só a Costa Vicentina me bateu no rosto como uma brisa estonteante de filme a ser feito pegada a pegada. Sofri a primeira enxurrada e acabei a exibir os filmes no portátil aos habitantes da Bordeira, enxuguei as minhas roupas em Aljezur, subi a primeira serra em Espinhaço de Cão, um turista inglês a dizer-me: “Quem me dera ter a sua energia!” Perto de Marmelete, em Monchique ofereceram-me uma laranja.
Agora, recordo tudo como um filme: as estradas sem bermas em frente a hotéis de luxo como a Penina, os cães acorrentados a servir de alarme barato por todo o Algarve, o pesadelo hooliganesco de Albufeira, a comerciante de Alte que um dia visitarei e que me dizia sempre: “Não, atravessar Portugal a pé? Não vai conseguir? Com essa tralha às costas? Não vai conseguir!”
O Algarve foi o meu laboratório, a minha base de lançamento, o meu atelier. Se tivesse de fracassar ou desistir, desistiria ali, depois de atravessar a mais solitária, desértica e hostil de todas as serras, o Caldeirão. Felizmente o sol continuou a abençoar-me e irmãos e irmãs surgiram do nada sempre que entrava em dificuldade. A dois quilómetros de Loulé, um tipo com a roupa pintalgada de tinta branca parou uma carro comercial de dois lugares e deu-me boleia: “Sei o que é ser mochileiro, fiz a costa leste da Austrália de mochila”.
O litoral em cimento do Algarve é particularmente triste em Março, à espera dos turistas, das raves, das comezainas, das hordas. Montegordo é um lugar onde não apetece ficar. Andei perdido em nas ruelas e avenidas de Olhão e só me reencontrei na Ilha de Armona, de novo junto ao mar. A partir daí bebi, cantei e convivi com os alentejanos, escutei versos feitos na hora só para mim, atravessei extensões de campo vazias mas belas na primavera, quando as papoilas rebentam entre o trigo e as oliveiras. Candidatei-me a caír à água no Pulo do Lobo de tanto querer fotografar a queda de água do lado de Serpa, andei aos pontapés a pedras, cobras mortas e poeira a caminho de Barrancos, recebi oferta de boleia de ciganos em carroças. Cruzei as últimas tabernas da área da Vidigueira antes que as transformem mais as suas traves em madeira e talhas em barro em restaurantes típicos.
Olho para trás, especialmente depois de ter atravessado as bandas desoladas da Lousã, Açor e a mais difícil de todas as serranias, a Estrela e sorrio ao pensar na quantidade de amigos e conhecidos que já deixei ao longo do caminho. A Estrela foi particularmente dura para quem não está acostumado a descer e subir com 12, 13 quilos de mochila. Na semana após ter trepado da Covilhã às Penhas da Saúde e daí à Torre e da Torre a Manteigas e de Manteigas às Penhas Douradas e Sabugueiro, pendurei a coluna e esperei que parasse de doer. Mas quem consegue parar? “Se gosta tanto disto porque é que não vem viver para aqui?”, perguntou-me em Dezembro passado a Dona Mena, do Restaurante e Bar Ponto de Encontro em Trinta, a dez quilómetros da Guarda. A verdade é que passada a chuva ininterrupta de Janeiro e meados de Fevereiro é um prazer regressar à estrada.
Bem hajam todos!
Adeus cigano 3
 
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