DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
19/03/09
"OH CRIATURA, CHEGUE-SE À FRENTE!"
São seis e meia da manhã na Praia da Torreira. Acabei de assistir ao nascer do sol lá para as bandas da serra. O amarelo torrado do amanhecer desenha um jogo de sombras e luz nas casas da avenida principal. Subo até à beira do mar, viro à esquerda e caminho no silêncio. Por mim passa um pescador numa samarra. Uma peixeira embrulhada num xaile castanho sai de uma casa, espreita o mar e diz: "Tanto frio". O Olá Sampaio ainda lá está, no areal, sózinho, o cordame a fazer-lhe companhia, ninguém por perto.Até que avisto o Zé Murta, o arrais do São Paio, mãos nos bolsos, casaco aos quadrados: "Não vai dar. Ontem rasgámos duas redes, não pescámos quase nada mas ontem estava um mar de senhoras. Hoje não dá para arriscar. Bom, volte daqui a uns dias, na internet dão bom mar para quinta-feira".
Entrei na primeira padaria a abrir na Torreira. Mulheres e homens vão chegando à porta e entram num corropio mal ela é aberta. Discutem a ordem de chegada, falam do último falecimento. Deixo-me ficar, tenho todo o tempo do mundo. Até que uma varina de vestida a rigor me pega no braço: "Oh criatura, venha cá, chegue-se à frente, vocês estava primeiro!"
O ZÉ MURTA VAI AO MAR
A companha do Zé Murta observa as movimentações, ao longe, da outra companha de Xávega da Torreira. Há duas semanas que o Olá Sampaio vai ao mar. Só na Praia de Mira é que a xávega também começou. Na Vagueira e no Furadouro, os barcos estão acabados de pintar mas à espera de Abril.
Na Quinta-feira, tal como Zé Murta previra, a Torreira assistia a um "mar de senhoras", uma rebentação ligeira que permitiu ao arrais do Olá São Paio preparar rápidamente a companha de modo a estar no mar logo pela manhã. Eram 7h00 e já o barco, de uns 9 metros e trinta, se fizera ao mar, ainda na sombra, que o sol haveria de nascer com os pescadores no mar. Zé Murta é dali mesmo, neto e filho de pescadores da xávega. Um dia viu o irmão afogar-se a trinta metros da praia. Tanto ele como a mulher e os filhos são gente calejada, de falas simples, secas, sem rodeios nem ironias nem perilimpimpins de grande cidade.
TRACTORES
Os tractores substituiram os bois há muito tempo. "Oh, os bois, isso já lá vai muito tempo", comenta alguém. O Zé Murta já trabalha com tractores há anos. Ainda jornalista do "PÚBLICO" fiz juntamente com o fotojornalista Bruno Portela, na Torreira, uma reportagem sobre a xávega e os barcos eram puxados pelos bois. Não vale de nada a nostalgia, quem lá trabalha é que sabe o que custa. Não laboram para os turistas mas para encher o bolso entre a pesca na Ria de Aveiro e a do mar da Torreira.
NA ESPERA
A REBENTAÇÂO
VEM AÍ
18/03/09
FURADOURO-OVAR
Desde a região de Vagos, com uma forte tradição de emigração para a Venezuela, que tenho vindo a ver este tipo de casas com muitos azulejos e metal dourado nos varandins. A maior concentração deste tipo de casas, no entanto, dá-se na Murtosa, onde a emigração para a Venezuela se junta à dos Estados Unidos.
PERDIDO NA MATA DAS DUNAS ENTRE TORRÃO DO LAMEIRO E O FURADOURO
Ia a percorrer a estrada entre a Praia da Torreira e o Furadouro quando, em plena hora de almoço, avistei uma placa aliciante: Casa das Enguias. Uma senhora muito simpática explicou que teria de esperar uns 45 minutos. Esperei, a ria ao sol, os barcos a passar ali à frente aproveitando o súbito acesso de primavera em Março. No final, entrei por Torrão do Lameiro adentro, ainda avistei um funeral que me fez tirar o boné e enfiei por um caminho nas dunas suficientemente largo para me convencer que ia direitinho ao mar. Para mais, existiam ali marcas de carros ou jeeps. Lá fui, o bruá das ondas cada vez mais perto. Para mal dos meus pecados, fui dar a uma clareira e a partir dessa clareira "inventei" uns dois ou três possíveis trilhos.
Dei por mim entre as acácias e a ramagem seca dos pinheiros mansos. Lá estava eu, em plena mata das dunas, um emaranhado de troncos e ramos, a tentar alcançar o mar sem uma faca de mato. Peguei num pedaço de madeira e fui batendo com toda a força para partir os galhos. De vez em quando via luz mais à frente e pensava estar finalmente a alcançar o caminho inicial. Andei naquilo umas duas horas. Rastejei por baixo de troncos partidos, tive de passar a mochila em zonas onde nem as acácias nem os pinheiros me permitiam passar. Por vezes, deitava-me e pensava se não teria de dormir ali. O som do mar vinha do lado esquerdo e mantive sempre a vontade de o atingir partindo os novos galhos e troncos que me apareciam pela frente. Quando o caminho original me apareceu, apeteceu-me dar pulos de alegria. Ao longe, a norte, avistei uns prédios. Só pode ser o Furadouro, pensei. Verdade. Ao fim de mais uma hora, pedaços de acácia na cabeça, alcancei o mar batido e escavado do Furadouro, as águas a bater num pontão junto aos primeiros prédios. Quem manda construir em cima das dunas?
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