DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

29/11/08

OS ÚLTIMOS PASTORES

 
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Ti Mané, 89 anos, ex-pastor

Há muitos anos a serra era do gado e dos pastores, de homens como Manuel Fidalgo dos Santos, conhecido como “Manuel do Pau” ou Ti Mané, 89 anos. “Nos meses de Inverno, eu ía daqui de Folgosinho mais uns quatro homens a pé com um rebanho de umas 200 e tal cabras e ovelhas até ao Douro, para a Régua, Pisão, Sabrosa, Alijó, Vila Real”. Levava cinco a seis dias para lá e no final das invernias regressava. “Chegava a levar as crias, borreguitos pequenos, elas a parirem. Para cá os borregos já vinham grandes”. Uma rez com três a quatro anos já sabia o caminho de olhos fechados. “Tão bem como eu”. O Ti Mané andou nessas andaças mais de 20 anos. Dormia onde? “Ao relento, à chuva e à neve, embrulhado na manta. Agora, como podem dizer que a vida 'tá má? Nunca viram o qu' é mau...querem é fados...”
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"Balote"
“Isto era tudo dos pastores, havia cá muitos pastores”, recorda Manuel Rafael da Costa, 75 anos, junto à lareira de casa, em plena largo do Pelourinho. “A junta até cobrava 25 escudos a cada pastor pelo conserto do gado nas terras que ficavam de pousio, 'tá-me a compreender? Ó depois vieram os serviços florestais, em 59 mas os pastores 'tavam habituados a andar pela serra, não queriam ir para os serviços florestais...ganhava-se pouco...emigraram”. De Folgosinho saíram pastores para França, Suíça. “Venderam o gado e partiram, uns a construir túneis, outros na construção civil”.
Hoje em dia, os pastores que permanecem na Serra da Estrela contam-se pelos dedos e conhecem-se todos uns aos outros. Encontrei vários no dia em que atravessei de Manteigas até Folgosinho. O mais famoso e mediático é mesmo Hermínio, protagonista do premiadíssimo documentário “Ainda Há Pastores?” de Jorge Pelicano. “Ele é meio amalucado, gosta de paródia”, comenta um. “Você se for por ali encontra-o de certeza”, garante Tó Querido, 47 anos, que encontro junto ao Mondego em Vargem de Vide, em plena hora de almoço. “Quer comer? Coma aí homem...”
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Tó Querido

O primeiro sinal de aparição de um rebanho e respectivo pastor vem muitas vezes dos cães serra da estrela, que ladram furiosamente mal me ouvem mas parecem apenas interessados em garantir a segurança do gado. Um traz uma gargantilha em ferro. “Oh, isso era para os lobos mas agora já não há lobos”, conta Tó Querido. Manuel Paiva Ramos, o “Balote”, esse encontrei-o a uns quilómetros acima de Manteigas, já para lá da Cruz das Jogadas. “Eu tenho dias que só converso com a minha mulher. Noutros dias vou lá abaixo a Manteigas”.
O “Balote” já trabalhou nos serviços florestais e na construção civil. “A casa de três pisos que tenho lá foi toda construída por mim. Vive lá o meu filho, trabalha nos serviços florestais, ainda ontem esteve a combater o incêndio em Sarnadas”. Incêndio em pleno mês de Novembro é estranho. “Alguém se descuidou a fazer uma queimada. Também não chove nem neva (a conversa foi tida antes do grande nevão de 29 de Novembro). Dantes sim, nevava, agora neva poucochito”.
Há dez anos atrás “Balote” tinha um metro de neve a entrar para as botas de cano alto. “Vou dar com um estrangeiro aflito. 'Tava numa caravana com a mulher e dois bebes, vinha com um pau, a pedir socorro, todo assustado por causa das crianças. Lá seguiu as minhas pegadas, foi pelo meu rasto até Manteigas”.
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José Pinto

Às vezes, o pastor aparece do nada, ao virar de uma curva, como José Pinto, uns olhos tímidos de quem nunca viu outras paragens. Os seus dois cães vinham há uns dez minutos a aborrecerem-me com um ladrar irritante e persistente. Estava a pegar numa pedra para os afugentar quando Pinto apareceu, ali, em Casais de Folgosinho, onde Pelicano encontrou muito poucos e hoje quase ninguém vive. “Atire-lhes uma pedra”, diz o pastor a sorrir. Os cães sossegam, não muito convencidos. O rebanho forma uma linha preta no topo verde do monte, um risco entre o verde do campo e o azul acizentado do céu gelado. “Aqui? Aqui não vive ninguém ou quase ninguém”.
José indica-me o caminho a seguir para Folgosinho pela calçada romana dos Galhardos. Trepo até ao bosque e a uns 300 metros da calçada viro à direita quando deveria ter virado à esquerda. Vou dar a um vale verdejante perdido na serra, o sol a caír, que as cinco da tarde já espreitam. Lá em baixo ouço chocalhos, a voz de uma mulher, fumo a escapulir-se de uma chaminé em pedra.
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Casal da Feteira

Em breve estou na presença do pastor António Cristovão, vestido a rigor, qual figurante de um filme sobre pastores. “Você 'tá mal, para Folgosinho ainda são uns dez quilómetros. Aqui? Isto aqui é Casal da Feteira mas o melhor é você ir andando...”
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António Cristovão

Rompo em desfilada de novo pela montanha, passo junto a um marco geodésico, amaldiço-o o frio e o engano. Vejo pela última vez a luz a refletir-se no topo da serra do outro lado, lá para as bandas de Videmonte. A noite cai e eu lá em cima. Sonho com Folgosinho, com luzes, alguma presença humana. Estão 3 graus. De repente, ronceira, cambaleante, aparece uma camioneta. Faço sinal. “Anda perdido?”, pergunta um de três homens, bonés e gorros na cabeça. “Boleia, somos três, aqui na cabine não dá, suba lá para cima”.
Trepo mais a mochila para cima de toros de madeira. “Agarre-se à fivela mas agarre-se bem”. Em breve estamos a descer a serra aos tombos por uma estrada de terra batida. As luzes de Folgosinho aparecem e desaparecem, como num filme trágico-cómico. Gelam-me as mãos e o rosto e a maldita camioneta às curvas e em descida acentuada pela montanha. A viagem parece não ter fim. Até que, de repente, umas casas, luzes, uma mulher a uma porta. Agradeço aos meus socorristas e corro para o aconchego do javali com feijão e cabrito assado do “Albertino”, uma instituição local.
“Eu tinha-o convidado para beber um copo mas você tinha de saír dali logo”, diz-me no dia seguinte Cristovão, impecável na sua jaqueta castanha de bordas pretas, em visita a Folgosinho. “Tem de lá voltar para beber um copo”.

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