O frio chegou de repente vindo dos penedos da Pena, varreu os camiões estacionados em frente aos restaurantes de estrada do Esporão, soprou pelo vale de Góis e trepou pela Cabreira em direcção a Arganil. Afugentou as gentes para dentro das lojas, arrastou folhas amarelas e avermelhadas, invólucros espinhosos de castanhas e a ramagem seca e outonal dos plátanos para o Ceira. Até os cardumes de peixes fugidios e pequeninos a correr atrás uns dos outros por entre as pedras pareciam querer fugir da súbita invernia. “Oh Dona Maria, faça-me um favor, feche-me essa porta”, pediu a dona da padaria, entre o quente aconchegante dos fornos e a rispidez gelada do vento entrando pela porta de madeira branca entreaberta.
Na serra, entre curvas de asfalto, as bermas cobertas de castanhas, um fumo branco de queimada ergueu-se no verde desfocado e triste da encosta contrária, mal se distinguindo entre o cinzento aborrecido do céu e a silhueta enevoada dos penedos de Góis. “Dão granizo para amanhã e neve para a Serra da Estrela”, diz um homem desocupado, de mãos nos bolsos, procurando conversa junto de outro a trabalhar uma latada. “Isto ainda não é nada”, responde o outro secamente, dirigindo-se para junto de uma pequena casa de xisto, a porta da garagem autenticada com a inscrição a branco “Garagem do Pirolito”.
Num dia de semana de Outubro, poucas pessoas se dão a ver na Cabreira. Uma avó cuida do neto e da filha na solidão do Café e Esplanada “Sonho da Juventude”. Uma idosa conversa com a vendedora de peixe que acaba de parar a carrinha na pequena praça da povoação. Dois homens consertam um algeroz junto ao restaurante “Tranca da Barriga”. Dois velhos espantam o frio sentados na tasca do taxista da Cabreira, que os ouve desfiar histórias requentadas e lentas à frente de dois copos de vinho a 30 cêntimos. “E eu ontem procurei-la, ela disse que ele 'teve um acidente mas que já saíu do hospital. Atão não era de vir falar co' a gente?” O segundo idoso, boina preta cobrindo a cabeça redonda e branca, esfrega demoradamente o queixo, depois o maxilar inferior como se acariciasse uma barba imaginária e aperta os beiços antes de levar o copo à boca: “Para quê? Ela não quer falar com vocês”.
A caminho da aldeia fantasma do Tarrastal, as copas de eucaliptos magrinhos chiam por cima da minha cabeça como baloiços. Soam vozes distante de homens e moto serras, algures perdidos na serrania. Um casal trabalha uma horta num vale perdido sem nunca dar pela minha presença. Umas botas de montanha repousam junto à porta de madeira de uma casa de xisto.
No Cadafaz, duas idosas irrompem de um beco conduzindo as últimas cabras da serra: “Está muito frio, sim senhor”, diz uma entre um sorriso envergonhado meio encoberto por uma manta de lã. A aldeia prolonga-se num casario que corre o topo da encosta de um lado ao outro, desemboca numa capela junto a um miradouro e segue pela Rua Doutor Oliveira Salazar, num misto de xisto e tijolo. Nos fundos da aldeia, espantando a solidão, um homem: “Tantas casas e tão poucas pessoas, não é? Vou p'ra dentro que está a ficar frescalhote”.
DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
27/10/08
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