DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

27/10/08

FUNERAL NA SERRA

Um homem vestido com uma samarra escura passa por mim ainda eu tenho a vista presa ao Ceira iluminado pelo sol das duas da tarde que corre entre pastos verdejantes da Candosa. O homem ultrapassa-me em passos largos e caminhada de aldeão. Quando dou por ele já está a ler um papel branco com letras pretas. Depois, desaparece entre pinheiros e eucaliptos, para lá da curva. “Gostava de ter a pedalada dele”, penso. O papel anuncia o funeral de Manuel do Colmeal.
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Quando chego à aldeia, uns três quilómetros adiante, já um magote de gente se vai juntando no largo perto de um café. “Lá se foi o Manel, era o seu destino...”, comenta um homem de suíças e popa à Elvis Presley vestindo um blusão preto de cabedal. “Chega a vez a todos, não é?”, diz a mulher que atende no café da terra. “Serve-me um copo”, diz o homem. “Tinto ou branco?” O homem das suíças acizentadas e grisalhas como cinza num rescaldo encolhe os ombros: “Tanto faz. Pobre do Manel. 'Inda era novo, não era?” A mulher, as mãos embrulhadas num casaco de malha, por cima do balcão: “Então não era...59 anos. Olha, este é que não teve sorte nenhuma na “bida”. Depois do primeiro acidente, disseram-lhe para parar de trabalhar. Continuou, teve o segundo acidente”. Um segundo homem entra no café, depois um terceiro, mais um quarto. “Não bebem nada?”, pergunta o homem das suíças grandes. “Pode ser um copito”, diz um. “Eu não posso, pode ser um sumo”, diz outro, muito magro, um homem jovem precocemente envelhecido, a pele seca e esticada no pescoço, os olhos avermelhados. “O segundo acidente foi de quê? Não caíu de um aindaime?” A mulher serve mais copos: “Olhem que vocês hoje têem de me ajudar, o patrão 'tá para o funeral e eu estou para aqui emprestada. As minis já sei que são 55...o copo de vinho? Trinta?”
Lá fora, uma multidão silenciosa de vultos negros cerca a Igreja branca erguida entre ciprestes no topo de um monte. Tudo o que se ouve no vale perdido na serra é o “vxxxxxhhhhh...” das eólicas pairando como fantasmas brancos sobre o Colmeal.
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“É às quatro, não é?”, pergunta um homem encostado a um calendário com uma paisagem de uns picos de neve muito brancos e um vale muito verde. Por cima, há raposas, um esquilo e um mocho empalhados. Ao lado, uma lareira. “Se for o padre Xavier, é às quatro. Com ele, não há atrasos. Se fosse o padre Carlos...” A mulher sorri: “Ui, esse nem amanhã...” Está escrito que o funeral do Manel do Colmeal é uma oportunidade para os cada vez menos habitantes da serra se juntarem. Veio gente de Góis, do Cadafaz, de Cepos, da Cabreira. Todos conheciam o Manel. “Ele tinha invalidez e continuava a trabalhar...Não era homem de parar. Deixou para aí obras espalhadas...” Um aldeão não perde tempo: “Os filhos acabam-nas, “num” é? É para isso que servem os filhos”. A mulher ao balcão: “Eles são muito trabalhadores...” Até que alguém ganha coragem depois de mais um copo: “Afinal, de que morreu o Manel?” O Manuel, já andava mal do fígado e vesícula, terá falecido de um fulminante cancro no pâncreas. “Pobre Manel, foi o dia dele”.
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Lá fora, o largo deserta. A serra encolhe-se de frio. Um a um, os homens vão saíndo. As mulheres há muito que estão na Igreja. O café esvazia. Só lá fica um idoso de bigode escuro, boina preta e olhos de raposa, as maçãs do rosto rosadas. “Eu já não tenho pernas para acompanhar o funeral, vou beber mais um copito. Coitado do Manel, este já não vai ao meu funeral. Dá-me lá mais um copito”.

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