DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

14/09/08

PORTUGAL DEPRIMIDO (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

Sanlucar ~

Bar El Pozo, Sanlúcar de Guadiana. Uma vozearia e garrafas vazias de Cruzcampo invadem o balcão enquanto um Sancho Pança andaluz observa a transmissão em directo de uma cerimónia no parlamento regional, em Sevilha e grita: “Ladrones! Paco! Mas un pincho e un tinto de verano!” Pagara um euro ao barqueiro e fugira, asfixiado, da desertificação, do estado da economia, da melancolia, da desconfiança lusitana perante o desconhecido. Afinal, não há nada mais triste que calcorrear com 12 quilos às costas o próprio país e vê-lo em depressão. “Já ninguém quer algerozes nem alcatruzes, passei a transformar a lata em caranguejos, barcos, cata-ventos, cães. Sempre vendo aos turistas”, explicara o velho e cansado latoeiro Aníbal Bandeira, em Tavira. “Aqui foi tudo embora, estão aí esses velhos que você vê”- quatro idosos compõem um quadro de ruralidade em extinção sentados na paragem de autocarros da Foz de Odeleite-“ e pouco mais”, confidencia um empreiteiro pouco animado: “Está a falar com o dono de uma empresa de construção falida”. Dei um mergulho nas águas barrentas do Guadiana, vigiado pelos fantasmas do costume- uma idosa de chapéu de palha, um tipo que sai de uma carrinha de caixa aberta-, visitei esse hino a tempos que já lá vão que se chama o Museu do Rio em Guerreiros e rumei a Alcoutim. “Aqui só temos estevas e pedras, todos os dias morre gente. A pesca? Acabou tudo com a poluição e as restrições de malha. O que nos vale ainda é a caça. Lá no Algarve...”, desabafa em tom de ironia o presidente da câmara, Francisco Amaral, “só se fala em golfe mas esquecem-se que há clientes da cinegética com mais poder de compra que alguns golfistas”.
Pena que as burocracias e as exigências legislativas não permitam que a caça do concelho seja consumida ali. “Para servir uma perdiz ou uma lebre local, tenho de a mandar inspeccionar por um veterinário e gastar milhares de contos num túnel de congelação. O investimento não justifica”, comenta Rosária Baptista, do Restaurante de cozinha regional Alcatiã, cujos pratos incluem perdiz à algarvia, lebre com feijão branco, coelho bravo à caçador ou javali estufado: “Acabo por comprar às grandes empresas que importam da Nova Zelândia”.
Descartados o turismo e a cinegética, Alcoutim toda ela é passado, quando as barcaças de minério desciam o Guadiana, o barbo e o muge- chamavam-lhe o 365 por ser comido todo o ano- povoavam o rio e o contrabando aliviava a fome. “Era um contrabando de miséria, uns quilos de tabaco, uns quilos de café. Ai mãe, não me fale disso tão pouco, a gente penava aí...” recorda Fernando, ex-contrabandista. “Às vezes, era para perder tudo”.
Quando um dos últimos pescadores da terra, Emídio Costa Rica, 75 anos, que todos os dias é visto junto ao barco no rio, me diz que já não pesca e me fecha a porta na cara quando lhe peço uma foto junto à barcaça, abalo para Espanha, à procura de algum oxigénio.
Valha-me o súbito irromper da primavera, o chuveiro quase espiritual da cascata do Pego do Inferno, as águas mornas de Manta Rota, a esteva da Mata das Terras da Ordem e as andorinhas rodopiando em círculos na praça central de Alcoutim. “Já cheira a Verão”.

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