DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

16/09/08

O PORTUGAL A PÉ É ISTO (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

O mercúrio trepou até aos 34 graus nos termómetros e a erva alta e os malmequeres impediram-me de prosseguir nos carris do defunto ramal de Moura, a desolada estação Serpa-Brinches transformada num cenário próprio de "Ao Correr do Tempo" de Wim Wenders. Por isso foi com satisfação que escutei o rebentar dos foguetes na aproximação suada a Brinches, maior ainda quando pude seguir a Fanfarra dos Bombeiros de Serpa deambulando pela povoação a despertar para mais um dia de festa.
"Senta-te aí homem e bebe qualquer coisa", desafiou-me o ex-cantoneiro e poeta popular António José Luís, 86 anos. Por estas bandas, conviver significa desfrutar lenta, pausadamente a vida, beber copos de tinto, petiscar e brincar uns com os outros. "Este? Com 86 anos derruba qualquer um no vinho", diz um. "Pudera, nunca trabalhou", comenta um amigo. António José Luís dobra-se, a barriga estendida de encontro à mesa da tasca, ri-se e prepara mais uma quadra.
Até a procissão da Nossa Senhora da Consolação serve de motivo para a galhofa. "Ai mãe, que procissão esta que nem um um avé Maria rezam…", desabafa rindo uma mulher. Comentário pronto de outra: "O padre está sofrendo de Alzheimer…"
Quando se apercebem que não consigo dormida em Brinches, os locais competem uns com os outros. "Eu vou levar este amigo a Pias e ainda bebemos um copo na tasca do Pata Curta", decide um ex-carpinteiro, amigo de António José Luís, que não se cala com verso nos dez quilómetros que nos separam da localidade. O Pata Curta, aliás José Bravo Castanho, recebeu a alcunha da avó: "Éramos dois primos chamados José. Eu, como era o mais pequeno, fiquei o Pata Curta e o outro é o Zé da Horta".
Na taberna museu do Zé Pata Curta, não se fala de outra coisa: A partida de 40 filhos da terra para a Suíça na manhã seguinte. "Com a fome que aí anda e sem trabalho até à apanha da Azeitona, aproveitam para trabalhar na pêra, na maçã e na vinha, em Sion".
Na manhã enevoada do dia seguinte, o primeiro a chegar é o Zé das Cabras. "Disseram-lhe que era às 7h00, anda passeando por aí". Homens e mulheres vão chegando com sacos, malas, garrafões. Abraçam-se, cumprimentam-se, já se conhecem de outros anos.
Largo Pias, a tasca do Pata Curta e parto em direcção à desolada Serra da Adiça por entre olivais desertos. Encontro um pastor, uma cobra morta e uma lebre que pula veloz entre as ervas altas. Num cruzamento em plena serra, a placa está tão enferrujada que preciso de adivinhar que rumo tomar. Arrasto os pés a assar e uma bolha a insinuar-se no pé esquerdo quando ao virar de uma curva deslumbro com o vale verde que se estende até à fronteira, o casario branco de Sobral da Adiça ao fundo. Inspiro o ar puro e serrano e digo para comigo: O Portugal a pé é isto.
 

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