DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

16/09/08

FRONTEIRA (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

 
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Naquele dia de meados de Junho passado, na sonolenta vila de Fronteira, viaturas enfileiravam junto a uma estação de serviço, os automobilistas alarmados pelo facto de em localidades vizinhas como o Crato ou Ponte de Sôr já existirem bombas de gasolina vazias. Num supermercado local, varri rápidamente as prateleiras, numa inspecção breve mas conclusiva: Começava a faltar leite, natas, bolachas, batatas fritas, refrigerantes. Vá-se lá saber porquê, a zona do alcool, com especial ênfase nos vinhos e cervejas, mantinha-se recheada. “Então, hoje tem jogo de Portugal, Deus me livre se faltasse a cerveja”, comentava mais tarde uma empregada de um bar da terra, o ar condicionado a embalar uma de várias bandeiras nacionais.
Custou-me largar o bulício de Estremoz em direcção às pequenas e desertificadas Sousel e Fronteira. Parti com saudades das ruas estreitas e brancas, da eiró grelhada que comi na Adega do Isaías, do bulício matinal do Café Alentejano e dos jogos da malha no Rossio. De repente, apressei o passo junto ao Saturno em pedra mais a sua gadanha, atravessei a Porta de Santa Catarina, desci até à rotunda mais próxima e abalei para os olivais e rectas a perder de vista da muito rural e despida EN 245.
Já me habituei às cobras nos matagais que ocupam aquilo que no tempo dos cantoneiros eram bermas, da mesma forma que me acostumei a campos de futebol ao abandono, a povoações minúsculas e fantasmas, a placas de trânsito ocultas por vegetação, à corrida célere das lebres, ao olhar especado dos bovinos, à companhia das cegonhas esvoaçando entre os postes de electricidade como vigilantes da planície amarela. Por vezes, dou comigo a esperar pelo avolumar do que ao longe pressinto ser um tractor.
Desertificação, no entanto, rima com solidão e por isso rejubilei quando, já depois das três da tarde, atravessadas as curvas e contra-curvas da Serra de Sousel, João Guerra, 30 anos de Rua dos Fanqueiros em Lisboa e proprietário do restaurante “Migas” me diz: “Homem sente-se, pode comer e ficar aqui o tempo que quiser”.
Ali há tempo e muito, muito espaço. “Aquelas luzinhas que ali vê ao fundo é Santa Vitória do Ameixial e mais ao fundo Estremoz. Daquele lado são as luzes de Cano e para trás avista Sousel lá em baixo e Fronteira ao fundo”, explica à noite uma empregada de uma das pousadas mais bem colocadas do país, em pleno Cerro de São Miguel. Lá em cima, junto à praça de touros mais antiga do país, o mundo parecia em paz consigo próprio. Puro engano. Acordei no dia seguinte com a crise dos combustíveis 13 quilómetros adiante: “Então hoje não há leite?”, perguntava uma idosa cirandando sonâmbula pelo supermercado de Fronteira.

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