DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

15/09/08

UM CAFÉ CHAMADO GUADIANA (CRÒNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

 
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A escassos metros dali, a Rua 25 de Abril está a ser alvo de novas escavações arqueológicas. “Aqui em Mértola é assim, abre-se um buraco para arranjar os canos e descobre-se mais coisas do tempo dos romanos ou dos árabes”. A tertúlia do Café Guadiana, o mais antigo da vila, vive de outras histórias, do passado recente, quando o concelho era o que mais trigo produzia, a Mina de São Domingos empregava cinco mil pessoas na extracção do cobre, as barcaças subiam e desciam o Guadiana e a vila vivia do comércio. “As carreiras das camionetas paravam todas aqui à frente”, conta Henrique Silvestre, 61 anos, 50 de casa. “Os ceifeiros vinham do Algarve e concentravam-se aqui à porta, aos 100 e 200. Os lavradores chegavam e diziam quanto pagavam”.
Uma das figuras mais emblemáticas do Café Guadiana, o primeiro a ter televisão na terra, chama-se Xico Rouxinol e até já tem o seu nome na travessa onde vive. “Sempre andei cantando. Tinha dois burros e andava cantando em cima do burro. Chamaram-me o rouxinol...” Xico personifica os velhos tempos. Foi embarcadiço, pedreiro, calceteiro, pintor e contrabandista: “Andava como os morcegos, de noite. Levava café e trazia cuecas, soutiens, lenços de seda”. Como a estrada era ruim, o material para a vila era transportado quase todo em barcaças. “Vinha tudo em barco à vela. Havia uns 20. Trazíamos cal, tijolos, adubo. Depois, o rio perdeu caudal e os vaus deixaram de ser limpos, desistiu tudo”.
Agora, Xico é quem faz a manutenção da histórica Torre do Relógio, o mais antigo monumento da vila, construído na época romana e não perde um ensaio do Grupo Coral: “O dia do ensaio é o dia em que ando melhor”.
No grupo que frequenta diáriamente o Café Guadiana, António Sequeira, reformado da EDP, ex- correspondente do “Século” e do “DN” e fundador de diversas colectividades, é o que mais tempo dedica à recolha de material sobre o tal passado recente. “Vibro com esta terra, tenho orgulho nela”. Em casa, guarda um arquivo de cerca de 8 mil fotos do que se passou em Mértola desde os anos 50. “Naquele tempo, era uma vila com muita actividade comercial que vivia do movimento da mina e da agricultura. Hoje, renasceu com a arqueologia, a criação dos museus, a recuperação do património. São ciclos históricos”.
Mértola é agora palmilhada por turistas de câmara a tiracolo que circulam pelo Castelo, Mesquita e Museu Islâmico com a avidez dos iniciados. A tertúlia do Café Guadiana, sedeada na esplanada, não se faz rogada a qualquer pedido de informação. “Uh, levantam-se todos ao mesmo tempo e discutem quem tem razão”, comenta um taxista.
“Até já fiz de árabe num filme”, ri Xico Rouxinol, “vestiram-me da cabeça aos pés”. Uma vizinha, a filha de um conhecido ferreiro da vila, já falecido, também fez de figurante. “Ganhei 25 euros”. Xico pisca o olho: “Eu ganhei mais 25 do que tu. Sei lá, gostaram de mim, não sei...”

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