DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

15/09/08

DO POMARÃO À MINA DE SÃO DOMINGOS (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

 
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Uma sapatilha assenta na rocha barriguda e acastanhada da esquerda, entre as ervas, a esteva e o pequeno charco que a chuva foi formando. Um braço, o direito, estica-se para equilibrar o corpo. As bátegas não param de alimentar a água que corre nas crateras em que se transformaram as antigas pontes. Salto, trepo a inclinação enlameada e só então me permito observar a boca do próximo túnel, encoberta pela folhagem.
Há 40 anos, quando a Mina de São Domingos faliu, levaram dali tudo: Os carris, as locomotivas, os vagões. Restam pedaços calcinados de antigas travessas, os pilares em ruínas das mais de 10 pontes e a tijoleira fantasmagórica dos sucessivos túneis. Lá dentro, procuro imaginar o som estridente das máquinas e a fumaça da Estiphania , a primeira locomotiva mas tudo o que escuto é o “tac, tac” dos ténis na lama e o “ping ping” que cai das abóbodas.
Cerca de 18 quilómetros e umas horas mais tarde: “O quê? Veio do Pomarão pela linha com essa tralha às costas?” O ex-mineiro António Marciano Barão, 72 anos, procura dar vida e cor à sucessão de arqueologia industrial que fui encontrando pelo caminho, recordando o primeiro dia: “Tremia e suava por todos os buracos. Era uma rata cega. Tinhamos de descer 936 degraus até ao elevador no piso 150. Ao fim de uma semana já estava acostumado a aterrar o minério. Também entivei madeira nas galerias. A mina era um mundo, trabalhavam aqui milhares de pessoas”.
Quando a mina fechou em 68, já a maioria dos mineiros sumira. “A partir aí de 64 foi abalando tudo para minas de carvão na Bélgica. Mas a maioria, habituados ao cobre, não se acostumou com o pó do carvão e acabou por ir limpar escritórios e trabalhar na construção”.
Hoje, a Mina de São Domingos renasce como pólo turístico, entre o dédalo de casas baixas e brancas dos antigos mineiros, a piscina fluvial, a estalagem de cinco estrelas e reminiscências da presença dos patrões britânicos: o Campo de Futebol Cross Brown, o cemitério onde até a terra veio de Inglaterra...
Estaciono na esplanada da Pensão São Domingos, de frente para a estalagem de luxo, na companhia do ex-pastor Tonio: “Uh, penei muito, penei muito, passei muita fome, os pés descalços na neve por essas serras. Pedia para comer”.
À conversa junta-se o pedreiro Tó Baleizão, de olho na motorizada que de tão reciclada não se percebe se é uma Famel-Zundapp ou uma Macal e que me surpreende com o repente: : “Foram trabalhadores da terra da nação/ Os ingleses roubaram tudo/ Ficou o Tó Baleizão/ E o Tó Baleizão com grande alegria/ Morreu o meu pai/ E ninguém o queria/ Ninguém o queria/ trabalhou até morrer/ trabalhou nas minas/ e ninguém quer ver/ Ninguém o quer ver/ é a verdade/ roubaram tudo/ viva a liberdade/ viva a liberdade/ tem de haver um respeito/matam crianças e tudo/ temos de pôr a faca ao peito/ Pôr a faca ao peito/ para sermos respeitados/ o Estado não faz nada/ E ainda somos roubados. Tá bonito?”

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