DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

16/09/08

ALENTEJO EM CRISE (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

 
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“Abalei do Alentejo/ Olhei para trás chorando/ Alentejo da minha alma/ tão longe me vais ficando”, canta, os olhos fechados, em plena concentração, José Arante, o “ponto” do Grupo Coral da Sociedade Recreativa Amarelejense. São 22 horas de uma noite morna no sótão da associação e três filas de oito homens ensaiam e preparam a próxima deslocação do grupo. Estes são tempos duros e difíceis para uma povoação que chegou a ter nove mil habitantes nos anos 50 do século passado e que ainda espera benefícios da construção do Alqueva, a norte e da enorme central fotovoltaica a sul.
Cantar é uma forma de espantar os males que assolam a terra mais quente do país: “A central empregou pessoal de fora, os campos estão todos nas mãos dos espanhois que só plantam olival, não há trabalho”, desabafa José Arante, que como a maioria dos 2. 700 habitantes vai a Espanha abastecer-se de gaz, gasóleo e carne. “Até nisso, os espanhois nos ganham. Uma bilha custa lá 14 euros e aqui 24. Um quilo de entrecosto ali em Valencita (Valencia del Mombuey) custa um euro, aqui oito”.
Arante e os outros homens cantam os tempos em que as terras eram cultivadas e não serviam únicamente para a produção de azeite: “Quando eu vejo alguém lavrando/ lembrando o tempo passado...” Por vezes, como na deslocação a Castro Verde, emocionam-se: “Nesse dia, havia pessoas a chorar no coro”, recorda Domingos Rosado, o ensaiador de um grupo que subsiste com muitas dificuldades: “O Ministério da Cultura nunca mandou para aqui um graveto”.
Os mais velhos, acostumados aos “tempos da miséria”, parecem reagir melhor a tudo, ao calor- “ainda o Vitinho era vivo quando aqui deu os 47 graus”- às contrariedades. De manhã, jogam dominó, à tarde entregam-se ao xito (malha) na praça da Torre do Relógio, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palitos de madeira.
“Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?”, pergunta José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. “Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco”. António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano que chega de tractor à partida de xito, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. “Agora é tudo máquinas. Esses engenheiros da energia solar só querem é máquinas...”
Deixo este canto deserto, envelhecido e esquecido do país, a 84 quilómetros de Beja, outros tantos de Évora e 24 de Moura, com um nó no estômago. Os gigantescos paineis solares acompanham-me até pegar a estrada para Póvoa de São Miguel. Procuro adivinhar onde ficava o aeródromo Cifka Duarte, desmantelado para a construção da central e que ultimamente servia de pouso a avionetas de transporte de haxixe para Espanha.
Um cigano oferece-me boleia numa carroça, cegonhas esvoaçam no ar por cima do dourado da planície mas não me saem da cabeças as palavras de um pai de família: “Abro a colectividade às 10h00 e fecho à 1h00 ou duas. Tenho uma folga por semana. Isto assim há três anos. Estou com uma depressão. Descansar? Somos cinco lá em casa e só eu trabalho...”

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