DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

16/09/08

PULO DO LOBO-SERPA (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")

 
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O "Pinta Xarolas" com as cordas com que pescava no Pulo do Lobo

Um dia, o “Pinta Xarolas” só não ficou no Pulo do Lobo porque a corda o segurou: “Pescavamos a lampreia com uma vara que segurava um arco de madeira com um gorro de rede lá dentro. Ía a puxar a vara para tirar um peixe, escorreguei, fiquei balançando preso à corda”.
Não há nada de engraçado em pular de rocha em rocha na margem esquerda do Pulo do Lobo à procura da melhor imagem da “corredeira”, especialmente ao fim de 21 quilómetros de campo, trigo, papoilas, sobral e olival a perder de vista, um silo e uma cidade lá ao longe na planície.
À medida que me emaranho no labirinto de cavidades e rochas que levam ao Pego dos Sáveis, na parte inferior da queda de água-poiso preferido dos pescadores-imagino o risco, a destreza, gabo-lhes a coragem.
“Atava a corda a uma rocha de 15 metros. Descia. Se calhava não chegar à água, voltava a atar a corda a outra rocha até chegar à pilheirinha onde me sentava”, conta António Mestre, 76 anos, conhecido como “Pinta Xarolas”. Dos que ali pescavam com cordas com ele, conta os vivos pelos dedos: “O Ti Beatriz, o António Neves...o Zé Pelica já morreu...morreram quase todos”.
Com as barragens, acabaram-se o peixe e as noites de 50 a 60 lampreias, a fogueira lá em cima, nas rochas cimeiras, preparada para o convívio. “Tenho muitas saudades. Se ainda houvesse lampreia, mesmo com esta idade, era capaz de descer essas rochas más outra vez”, diz o “Pinta Xarolas”, como que sonhando em voz alta.
Em redor, do Vale do Poço ao leito do Guadiana e dali a Serpa, o campo jaz em abandono. No primeiro troço, são os montes- o Passa Leve, o Pena Ventosa- quase todos abandonados e uma outra herdade: porquinhos pretos mamando nas tetas da mamã porca junto a abrigos metálicos preparados para estas parirem, vacas e bois especados do lado de lá da vedação metálica ao ver aparecer do nada um ser de mochila às costas, um rebanho de ovelhas debandando assustado.
“Aqui já não há quase ninguém”, comenta de sorriso envergonhado nos beiços Manuel Cavaco, 48 anos, um dos últimos habitantes de Vale Queimado, a dois quilómetros da queda de água. Um pequenino cão preto segue as pisadas de Manuel da pequena casa branca até à fornalha onde faz carvão para vender.
Dali em diante, até à vila, sucedem-se as grandes herdades de caça turística. “Os ricos de Lisboa caçam aí perdizes, lebres, até veados...”, explicam-me. À porta de uma herdade, um homem de colete à Coronel Tapioca encosta-se a um jeep e fala ao telemóvel: “O engenheiro que venha cá ver isto. Temos de resolver a situação até ao fim de semana”.
A luz do fim do dia surpreende-me a dois quilómetros das imperiais da Cervejaria Lebrinha e de uma boa cabeça de borrego assada quando um homem numa renault me oferece boleia: “Aguentas aí um bocadinho, estou cortando erva para as minhas duas éguas e já abalamos”. Deixa-me à porta da cervejaria- “Bebe duas por mim”- e convida-me para a partida de futebol no dia seguinte. Resultado: Futebol Clube de Serpa-4- São Marcos da Ataboeira-0.

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