DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
17/09/08
O PARAÍSO PERDIDO DOS PORTELAS (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")
Com o calor a trepar aos 39, 40 graus, fui para a porta da junta de freguesia de Envendos às 9h00 da manhã perguntar pelo presidente. “Está a dormir, volte à tarde”, disse um homem. “Mora ali ao pé do lar dos idosos. Mas está a dormir”, disse outro. “Como se chama? Não sei”, respondeu um terceiro. Ajudado por duas freiras brasileiras, lá bati a duas portas de alumínio observado pelo terceiro homem. Bum, bum, bum! Nada. Fiquei ali especado, no meio da rua, até que o homem levantou-se, desceu a rua e passou junto a mim. É esta a casa do presidente? “Está a dormir...”, comentou irritado, encolhendo os ombros.
Abalei, pior que estragado, para a Zimbreira. A Zimbreira, pouco mais de 30 habitantes, fica no fim do mundo, no fim do concelho de Mação, no fim do Ribatejo, no fim de tudo. Pertence à freguesia de Envendos mas é, como outras aldeias, um apêndice esquecido, povoações onde vivem um ou dois habitantes cujos filhos e netos vivem na Baixa da Banheira ou em Massamá ou em Odivelas e que desconfiam de estranhos com a naturalidade de quem respira.
“Ui, esse dorme muito, está sempre a dormir”, explica-me agora Rogério Portela, dono do único café da Zimbreira, que descobri com satisfação a roçar a euforia. Na parede do pequeno café, lê-se: “O Sol quando nasce é para todos” e no interior uma bandeira portuguesa borda os dizeres “ZIMBREIRA, AQUI TAMBÉM É PORTUGAL”. Portela, 79 anos, vive ali com Ana Cristina, 35 e o filho de ambos, Roberto, 12. Natural de Moçambique, ferroviário em Lourenço Marques, caíu ali de para-quedas em 76 com quatro filhos e a primeira mulher. “A situação em Moçambique estava muito difícil. Um colega meu sugeriu que viesse para a terra dele, que me alugava a casa. Vim para aqui, nunca aqui tinha estado. Os meus filhos choravam, era só lama, frio”. Nunca mais dali saíu, nem mesmo quando do horrível incêndio de 2003, que o apanhou a ele e ao filho mais novo na estrada. “Não podia, não podia abandonar esta gente!Davam-me batatas, mantas, tudo”, explica.
“Quando cheguei não havia ruas nem electricidade nem água canalizada nem transporte escolar, as crianças íam a pé para Envendos”, conta. Portela começou a escrever a ministros e presidentes e a intervir na Assembleia Municipal. Conseguiu a luz eléctrica e táxis para levar os estudantes até Envendos em 1978 e insistiu com o então presidente Ramalho Eanes para que alcatroassem a estrada e as ruas da aldeia. Hoje, dá de comer a um idoso de 90 anos renegado pela família e alberga uma jovem de 25 abandonada pela mãe.
A Zimbreira fica rodeada de vários paraísos naturais: a Serra da Boiça, a cascata do Pêgo da Rainha e a mais obscura Pêgo das Bruxas, que Roberto e os amigos atravessam entre rochas e limos e arvoredo para alcançar um escorrega natural. A dois quilómetros, fica a albufeira da Pracana, avistada por quase uma dezena de casas abandonadas pela EDP. “Está tudo deprezado, podiam fazer uma piscina fluvial no Pêgo da Rainha e aproveitar as casas para um parque de campismo, uma estalagem...”, desabafa Portela, que escreve regularmente no jornal “A Voz da Minha Terra”, da paróquia de Mação.
“Gosto de ajudar, não desisto”, diz Rogério Portela, rodeado pelo Roberto, que bebe cada palavra sua com a avidez do iniciado. “Não te disse que o meu pai era muito fixe? Anda, vamos tomar banho no Pêgo da Rainha!”
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