DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
16/09/08
MAÇÃO 40 GRAUS (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA")
"Oh mãe, olha um senhor com uma coisa às costas". Um grupo de mulheres espanta a brasa seca e calcinante do fim da tarde na esplanada de um café de Gavião, à frente do jardim do Cruzeiro, onde homens afogueados montam os stands da XVII Mostra de Artesanato, Gastronomia e Actividades Económicas do concelho. Uma das senhoras vira-se para a criança: "Aquilo é uma mochila, como a que o Rogério levou para o acampamento em Abrantes…"
O cansaço e a sede só me dão para sorrir. Entro no café recheado de cartazes a anunciar uma multitude de festas de aldeia, os mais velhos bebendo copos pequenos e redondos de tinto, a observar a minha chegada como a de um extraterrestre e peço uma garrafa de água de litro e meio. "Fresquinha? Veja lá esta", diz um rapaz tristonho, de camisa preta, a testa povoada de gotas de suor, um braço enfiado no congelador.
O calor assassino da segunda semana de Julho apanhou-me entre Nisa, a monotonia dos eucaliptos que se estende até Gavião, a frescura da Praia do Alamal, o castelo de Belver a pairar sobre as águas refrescantes do Tejo e a estrada às curvas para esse barril de pólvora seca pronta a arder chamado Mação.
Em Nisa, espantei a solidão numa noite de karaoke no Kalips Bar. Um cinquentão alcoolizado que quase se estatelara nas escadas procurou explicar-me, a voz muito entaramelada, que desistira da política. "Já não há lugar para gente honesta, como eu", disse, a voz mais pastosa que um pântano em dia de chuva. Depois, virou-se para trás, os olhos redondos e inchados de peixe a saltarem das órbitas: "As miúdas novas já não querem saber de um gajo..."
Subi as escadas metálicas e fugi para a frescura jovem da animadora, uma versão norte-alentejana de Claudia Vieira, as pernas esguias e bamboleantes a agitarem uma curta mini-saia: "Carlos e Fernanda cantam Deite-te Quase Tudo!" Umas vozes riscadas e agrestes começaram a cantar: "Invadiste os meus sentidos, o que eu não fiz por amor e deixaste a minha vida, mãe perdida, neste beco sem saída". Fugi de novo, desta vez para a noite morna onde uma jovem desabafava ao telemóvel: "Estou magoada, farta de Lisboa, ao menos aqui as pessoas respeitam-se..."
Cheguei a Gavião a pensar no último crime passional do concelho. Quisera o destino que mergulhasse nas águas barrentas e paradas da praia fluvial da Comenda, ali bem perto, poucas horas depois de António, 67 anos, casado, ter assassinado Maria, 33, solteira, com dois tiros de caçadeira, a mesma que usou para se suicidar. "Disse no café que ia rebentar uma bomba em Comenda. Uma hora depois esperou a gaja quando ela estava a estacionar o carro e prontos. Acho que a encontrou com outro gajo, um vendedor de Alter do Chão", contar-me-ão um dia mais tarde, uns quilómetros mais à frente, do outro lado do Tejo, em frente a uma queixada de porco, na Casa de Pasto O Marinheiro, em Belver.
Por fim, Mação. Ali, onde há cinco anos o fogo varreu o concelho e entrou vila dentro, o mato, a palha, as ervas, irrompem onde menos se espera: Por trás do tribunal, por trás de tapumes, junto a um depósito de combustível atrás da residencial, junto à novíssima sucursal do BCP. "O presidente da câmara foi na segunda à praia fluvial e disse que ali era a parte do concelho que ainda não tinha ardido. Quer-se dizer, os bombeiros agora estão a receber telefonemas anónimos. Dizem que pegam fogo ao resto...", comenta um habitante.
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1 comentário:
pois meu amigo esse bar do karaoke e de escadas metálicas não se chama
kalips mas sim bokas bar
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