DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

03/06/10

CRÓNICA PUBLICADA NO CAFÉ PORTUGAL (clicar para ler no site)

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Descia um caminho pedregoso perto da aldeia de Azevedo quando ouvi chocalhos. Avistei as cabras, primeiro. Depois, surgiu o aldeão, bordão assente no ombro direito. “Você atravessa o Cávado naquela ponte lá em baixo e segue sempre para Covêlo”, explicou, um sorriso largo e genuíno, que lhe engelhou as rugas junto aos olhos e exibiu uma falha nos dentes.
Aquilo era o que queria ouvir. Avistara a ponte lá em baixo junto à pequena corrente que desemboca na Barragem da Venda Nova e decidira desistir de seguir pela margem direita depois de outro aldeão em Azevedo me descrever o caminho até São Lourenço, já para as bandas de Cabril, como um mar de silvas.
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A caminho de Ferral e mais tarde Venda Nova, já no perímetro da albufeira, entre vacas muito castanhas e cornos altivos espreitando cada passo meu entre arremedos de vinhas e espigueiros, comecei a perceber que se aproximava a minha despedida do enorme concelho de Montalegre.
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Um pé na Serra da Cabreira e outro ainda no território verde, mágico e hospitaleiro do Barroso, vieram-me à memória cenários, frases soltas, personagens, contadores de histórias que ía deixar para trás. “O povo barrosão é são”, definira-me Fernando Moura, mais conhecido por Fernando do “Barracão”, o rei das chegas de bois barrosos. “O barrosão abre-se para qualquer pessoa, é capaz de dar a camisa, dar de comer, dar a casa mas se desconfiar e sentir-se ferido, nunca mais”.
Nuno 2
Ao longo da estrada barrosã, entre fornos do povo, vestígios romanos, carvalhos e urze a despontar nos campos, fui encontrando cicerones, contadores dos tempos que acabaram. “Nem neve nem chuva, não entrava nada nas croças de junco, andávamos com o gado pelo monte e até suávamos porque ainda botávamos a capa de burel por baixo se estivesse muito frio”, contou-me o Ti Joaquim, 85 anos, o último croceiro do concelho.
Na Solveira, o meu anfitrião foi Jaime da Silva, ex-ferreiro, ex-emigrante em França, defensor do património da aldeia e coleccionador de tudo o que é antigo. “Vê esta sineta em pedra? Era aqui que se chamava o gado para pastar em vezeira, à vez, tudo em comunidade…” Bem mais adiante, já em Montalegre, Fernando Moura lembrou quando em criança organizava chegas improvisadas. “A minha aldeia era ponto de passagem das manadas. Esperávamos que os guardadores fossem dormir, tirávamos o boi mais forte e punhamo-lo a chegar com o nosso”.
Às vezes, a brincadeira corria mal: O boi escapava-se estrada acima ou então não queria sair e bruava, acordando os guardadores. O resultado era umas quantas vergastadas, que não arrefeceram nunca a paixão de Fernando pelas chegas. Onde houver uma, lá está ele a relatar para a Rádio Montalegre e para a TV Barroso: “Já pegaram, já pegaram, o boi do Domingos está a roncar, vamos lá a ver, já estão a torrar a valer, a esgalhar bastante bem, ei, eh touro, o outro já foge, bela chega! Miguel, Miguel, para a TV Barroso, satisfeito com a vitória do teu touro”?
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De modos que me despedi num dia de sol, a assistir a um chega de bois. No estádio vizinho, o Desportivo de Montalegre falhava a manutenção na Terceira Divisão mas ali, a excitação antecipava a do começo do Torneio de Chegas de Bois Barrosos, quarta-feira, dia 9 de Junho: “Berra pelo touro, berra por ele! Eh Mané!”

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