DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
02/12/08
NO SILÊNCIO BRANCO
A velha senhora apareceu do nada, daquelas ruelas de pedra com muita História, que em Linhares tudo respira passado e aristocracia. Acabara de trepar ao castelo para ver até onde chegava a neve. Desde sábado que neva como há muito não nevava. Nesse dia, Linhares acordou com neve pelo joelho. “Até o padeiro não veio, a ver se aparece hoje que estou a ficar sem pão”, soltou, muito embrulhada num xaile de lã, arrepiada com o frio. Daí a pouco, saído de uma travessa, lá veio a carrinha branca do pão. “Não vim? Vim pois, você é que não me viu...vim por Cortiçô e depois subi, 'tava dificil mas vim até cá acima”, resmunga o padeiro, que ainda tem muitas voltas para dar no rosário de aldeias que povoam a encosta naquele canto norte da Serra da Estrela.
Hoje a neve já derreteu, há turistas a saír rápidamente de jeeps e carros, acasacados, à procura de uma foto com neve e de um café aberto. A aldeia encolhe-se, os poucos habitantes são quase todos idosos e estão cansados de frio e do branco da neve. Ali mais a baixo, na quota dos 600 metros, há gente a aproveitar o feriado para apanhar a azeitona. “Hoje já varejei duas oliveiras, até já tenho um lenho aqui no dedo. É aproveitar enquanto não chove nem neva para dar conta dela. Este ano hei-de apanhar uns mil e tal quilos...”, contou-me um aldeão de Cortiçô.
Em Linhares, há pouco ou nada para gastar o tempo. “Oh, isso antigamente, chegavamos a ficar oito dias isolados. Era cada nevão. Olhe, adeus que tenho frio, vou para perto da lareira, não se consegue estar na rua”. Uma mãe e uma filha correm a refugiar-se num café mas antes de entrar ficam especadas a olhar para mim e a minha mochila: “Oh mãe, aquele homem vai subir a serra?” A mãe faz que sim abanando os cabelos aloirados e diz: “Anda, vamos para dentro”. Para as bandas mais altas de Folgosinho e em todo o itinerário que fiz há dias, a neve pinta a montanha, cobre de branco o que é verde e negro. Um cão serra da estrela ladra furiosamente mas como quase sempre com os serra da estrela acaba por se aproximar e deixar que lhe faça umas festas.
Enveredo por um caminho de terra batida. A princípio a neve brinca ao esconde esconde com pedaços de terra e pedra. À medida que se sobe, os pés são obrigados a caminhar com mais atenção. Sigo as marcas de uns pneus, depois sigo as pegadas de alguém que ainda se aventurou serra acima. Mais tarde, sigo pegadas de um animal, um cão, provavelmente. A determinada altura, as pegadas terminam, os ténis enterram-se na neve- preciso de comprar umas botas de cano alto- e começa a sinfonia de branco: pinheiros raquíticos as hastes brancas acumulando neve; carvalhos pintalgados de branco; fragas de negro e branco. E acima de tudo, aquele silêncio branco. Muito de vez em quando, um revoar de nuvem abre uma aberta e sou autorizado a contemplar a montanha. São breves segundos aos quais se sucede o mesmo cobertor de nevoeiro abatendo-se sobre a neve, a serra, as pedras, os pinheiros, as ervas. É o silêncio branco. A 1200 metros de altitude, junto ao local onde funciona um clube de parapente, tenho esse sonho branco e mágico só para mim. Tudo o que mexe é uma corrente de água que não gelou numa fonte coberta de neve. Quando regresso a Linhares pela estrada de asfalto, foi como se tivesse saído de um filme a branco, de um sonho algures na Finlândia. Mostro, encantado, as fotos ao aldeão das oliveiras: “Ah sim, a neve para quem nunca viu é bonito. Quer-me ver a varejar as oliveiras? 'Tá lá a minha mulher, a minha filha, tem que ser, todos precisam de ajudar”.
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2 comentários:
Bate bate levemente....!
Que a neve te seja leve companheiro!
Bons Caminhos!
Nuno Marçal
Bibliotecário-Ambulante
Nuno!!!
um grande abraço para Proença-a-Nova!
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