DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
14/11/08
"BOA TARDE SENHOR ENGENHEIRO"
A Barragem de Santa Luzia está um pouco como o país, em baixa forma, as margens desnudadas pela seca. Não chove, há pouca água e o Casal da Lapa e o seu pequeno aglomerado de cafés e restaurantes jaz desértico, frio, feio, ventoso. Trepo até à Portela d'Unhais, decido a embrenhar-me pelas curvas solitárias de uma das paisagens mais solitárias de Portugal. Na cabeça, levo ainda o artigo de Nuno Francisco que lera no “Jornal do Fundão” de 6 de Novembro. No concelho que atravesso, o de Pampilhosa da Serra vivem 5. 220 pessoas em 396 quilómetros quadrados de serranias. No 12º ano, estudam 4 alunas, uma das quais faz todos os dias 50 quilómetros para se deslocar de Malhada do Rei até à sede do concelho.No exame nacional de Matemática, apenas um aluno participou. Obteve 6,5. Logo, a média da escola no ranking nacional foi de 6,5, a pior do país. O dia virá em que a escola não constará no ranking e provavelmente nem será precisa porque não existirão alunos. Viro costas à desolação e trepo serra acima, entre camiões que transportam brita para a beneficiação do troço de estrada que segue de Portela d' Unhais em direcção à Barroca Grande, às Minas da Panasqueira e a São Jorge da Beira. No topo da serra, passo por uma placa que me dá as boas vindas ao concelho da Covilhã. É então que, de repente, avisto lá bem em baixo o casario em filas brancas das minas da Panasqueira. Quem vê a Barroca Grande posta em sossego procura imaginar os dias em que ali trabalhavam milhares de homens. Agora, num dia cinzento e tristonho, desço junto à estátua do Jesus Operário e atravesso ruas imersas em silêncio.
No restaurante das minas, o “Gasómetro”, encontro uma lareira acesa, uma mãe jovem debruçada sobre uma criança numa alcofa e uma mesa ocupada por...engenheiros. Trocam amarguras, decepções, algumas maledicências. “Isto é aquela mentalidade conservadora em que as pessoas olham só para quanto custa e não para quanto vai valorizar”, diz um. “Olhe, uma coisa é manutenção, outra requalificação. Nós estamos aqui para manter as máquinas a andar. O engenheiro mais jovem não se conforma: “Ninguém acredita no benefício que a limpeza das máquinas pode trazer...” Ouço falar em vagões, compressores, válvulas, acumuladores, travagem. Tento decifrar a mensagem como quando ouço uma língua estrangeira que me não é familiar. A mulher jovem interrompe: “Vai querer o café pingado, senhor engenheiro?” O homem olha para uns capacetes amarelos que escondem as lâmpadas que mal alumiam a sala e responde impaciente: “sim, sim”. Alguém ali, não naquela mesa mas na mina, é “incompetente”: “Mas já falaste com ele?” O engenheiro jovem: “Estou farto de falar, diz-me sempre para pôr os compressores a trabalhar e prontos...” Alguém se sai com uma tirada filosófica: “Muitas vezes atrás de um gajo porreiro vem um gajo menos porreiro mas que é mais respeitado”. O jovem engenheiro de barba rala parece o mais nervoso. Levanta-se, algo exasperado. “Boa tarde senhor engenheiro”, cumprimentam as mulheres, numa reverência quase beata. A porta fecha-se. Ouve-se a voz de um homem: “Aparece aqui cada amostra! Este deve ter falsificado a idade para vir para aqui...”
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário