DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

26/07/08

CHOVEU TODA A SANTA NOITE (CRÓNICA PUBLICADA NA "ÚNICA"

IMG_3522

Chovera toda a santa noite. Carrapateira, a branca, acordou sob um céu pesado e invernal, uma corrente de água castanha a descer dos montes pelos paralelepípedos abaixo. Pensei: foi isto, o maldito alerta amarelo foi isto. Como a teimosia tem muita força e estava um pouco farto de ouvir falar em captura de perceves e polícia marítima, peguei na mochila, enfiei a roupa impermeável e debandei em direcção às dunas, decidido a atingir a praia da Bordeira pelo areal.
A primeira rasteira veio da própria ribeira da aldeia. A água lamacenta estendera-se num lago que me fez cirandar irritado pelo sapal e procurar contornar a pequena laguna pela estrada. Percebi rápidamente o mesmo que três jovens surfistas espanhois: O caminho em tábuas de madeira que desce para a praia, estacava abruptamente nas águas revoltosas da ribeira que cortavam as duas margens de areia como frágeis fatias de um bolo.
À saída da aldeia, já sob chuva torrencial, um alemão surgiu de uma reconstruída casa rural em pedra de xisto. “Vem para cá, não vais querer ir a pé com um temporal desses”, chamou, uma chaleira numa mão e um bocado de pão na outra. Apontei para a sua banca de abóboras com um cartão “vende-se” cruelmente fustigado pela ventania e respondi: “Também me parece que não vais conseguir vender abóboras hoje”. Sorriu, fechou a porta e eu continuei a minha caminhada insensata em direcção a Aljezur. Portugal a pé? Naquele momento, o termo apropriado seria massacre a pé. Deixara Sagres posta em sossego e sob um sol primaveril dois dias antes, homens a jogar boliche na praça central, surfistas de pernas espetadas no tablier dos jeeps, nómadas loiros beberricando cerveja junto a auto-caravanas.
Cruzara falésias brancas de calcário, o verde recortado dos carrascos competindo com o amarelo da perpétua, a das areias. Cumprimentara uma pastora do seculo XXI, observando as ovelhas à distância, o bordão dentro da viatura. Jogara calhaus rolados na Praia do Castelejo só para escutar o baque surdo nas águas, chutara pinhas, falara sozinho, cantara Jorge Palma no Miradouro da Barriga- “Eu venho do nada porque arrasei o que não quis em nome da estrada onde só quero ser feliz...
Agora, a caminhada não passava de um exercício insano, varrida por água e vento em revoadas. Parei à entrada da Bordeira, a pequena aldeia branca sob um dilúvio de chuva. Foi quando vi a senhora, num terraço. Um rio caudaloso descia lá de cima, das serranias e ameaçava invadir-lhe a casa. Corri. Refugiei-me no café da terra, uma ilha num oceano de água lamacenta e zangada, a tempo de ver Rafael Santos, o presidente da Junta de Freguesia: “Temos de tirar dali o Ti Chico, ‘tá acamado, tem de saír dali”. A dona do café, sempre a limpar a água com uma vassoura: “Aquilo ali, no meio da água, é um pedaço de alcatrão? Minha Nossa Senhora...”

Sem comentários:

 
Site Meter