DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

07/10/10

"ESTA GENTE NOVA NÃO SE ACREDITA" (clicar para ler no site CAFÉ PORTUGAL)

Nos meses de Inverno, Manuel Fidalgo dos Santos, conhecido como “Manuel do Pau” ou Ti Mané, largava Folgosinho (Gouveia) com mais quatro homens a pé acompanhando um rebanho de mais de 200 cabras e ovelhas até ao Douro, Régua, Sabrosa, Alijó, Vila Real. Levava cinco a seis dias para lá e no final das invernias regressava. “Chegava a levar as crias, borreguitos pequenos, elas a parirem. Para cá, os borregos já vinham grandes”. Uma rez com três a quatro anos já sabia o caminho de olhos fechados. “Tão bem como eu”. Durante os 20 anos em que andou nessas andanças, o Ti Mané dormia à chuva e à neve, embrulhado na manta. “Agora, como podem dizer que a vida 'tá má? Nunca viram o qu' é mau? Querem é fados...”
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Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: “Dizem que estou a inventar”.
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita de foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construíu a sua primeira gaita: “Eramos pastores, eu e os meus irmãos, andavamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita de foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...”
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Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o caír da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: “Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...”
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: “Oh, nos tempos da miséria...” Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
Antonio+Jose+Ferreira,+Manuel+Carrilho+e+Jos%C3%A9+Ferreira+Cantarinho+(esq+para+dir)[1]
“Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?”, perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. “Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco”. António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. “Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...”
Agostinho José Caetano

4 comentários:

Teresa disse...

Pois... os tempos dos "Ti Manés" foram certamente mais austeros, mas a verdade é que o conceito de pobreza sofreu uma evolução... a pobreza dos dias de hoje é bem diferente da de outrora.
Boas caminhadas!!!

Sara Veiga disse...

Totalmente de acordo com esses "Tios" todos.
Tenho bem presente que é preciso relativizar, nesta época em que a crise é tão publicitada (porque é conveniente...).
Além de compararmos com o passado não tão longínquo assim, devemos também comparar com a realidade actual de países onde a água potável ainda é uma miragem, onde não existe sistema de saúde funcional, onde guerrilhas continuam a recrutar crianças...
Parabéns pelo blog.

quintadocochel disse...

Sabedoria de gente que sabe o que é a vida!
Por culpa de muitos pais, também há muita gente nova que não sabe o que custa viver a vida!
Se passar por estas bandas, Fornos de Algodres-Guarda, pergunte por mim!
Um abraço!
quintadocochel@gmail.com

RPM disse...
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