DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
25/09/10
CONCERTINAS E DESGARRADAS EM PONTE DE LIMA
“Dá licença que se toque aqui concertina?”, pergunta quase abraçado ao balcão um homem grande e calvo, ombros largos, bigode hisurto, olhar quase fulminante. A resposta da mulher do outro lado da barricada é de enfado silencioso. Aquilo ali é uma pequena pastelaria, não uma tasca e por detrás da grande figura já se vislumbra o perfil do chapéu branco de José Caxadinha, famoso cantador local de desgarradas e, para piorar as coisas, o chapéu de palha do sobrinho Pedro Caxadinha. Entre eles, apesar dos laços familiares, alimenta-se desde há anos uma rivalidade de galos cantantes. Mais do que simples tocadores de concertinas, os dois rivalizam nas deixas e no versejar endiabrado. Pedro é mais novo e ataca o trono de José com a agressividade e sangue jovem de quem pressente ter ainda muitos anos pela frente.
De dentro do balcão, da mulher nem sim nem não mas estamos em plena noite de rusgas nas Feiras Novas, em Ponte de Lima e ninguém terá coragem de dizer que não a mais uma concertina. A desgarrada começa, Pedro sempre ao ataque, o tio mais resguardado junto aos amigos ao balcão. Tal como certamente previra a dona do pequeno estabelecimento, a desgarrada eterniza-se, os clientes que já estavam ficaram mas a entrada bloqueou com uma mole de curiosos que nem entra nem sai. Como uma luta de galos, a parada de versos vai subindo de tom e Pedro vai descobrindo pequenos episódios mais ou menos embaraçantes da vida do tio que provocam as gargalhadas da geral. As hostilidades só terminam quando o homem grande despega do balcão, parece querer cerrar as pálpebras, abre de novo a pestana e com o mesmo olhar sério do início, cai redondo no chão. Os outros homens seguram-no pelos ombros. Alguém se oferece, entre risadas, para o levar a casa e a desgarrada passa para a rua, onde milhares de pessoas cruzam o empedrado naquela que é a noite mais animada, febril das Feiras Novas.
À medida que a noite avança, quase não se consegue circular. Aparecem concertinas e grupos a dançar um pouco por todo o lado. José Caxadinha perde-se, numa esquina movimentada, a cantar ao desafio com outros cantadores, que surgem não se sabe de onde. Um traz a camisa aberta, a garganta oleada pelo alcool. Os olhos do veterano Caxadinha raiam de sangue e brilham como berlindes na noite, todo ele contentamento.
“Eu sou tolo pela desgarrada”, explicar-me-á mais tarde Pedro Caxadinha, numa das tendas de comes e bebes da família. Não é que não goste de tocar concertina mas a adicção está nas cantigas, nas larachas, na interacção com o povo. “Isto já é de raça, de família, aprendi com o meu tio e agora é uma febre. Não perco um encontro de concertinas, uma romaria. Onde houver uma concertina, eu estou lá”.
Para cantar a desgarrada, diz Pedro e afirmam todos, é preciso beber. “É preciso um grão na asa para soltar a imaginação mas tem de se saber beber. Quem bebe demais já não consegue cantar.”Como explica de forma prosaica outro cantador: “Tem de se aguentar de pé, se caíu, já se fodeu todo”.
Na tenda de Quim Caxadinha, onde Pedro assenta arraiais com a sua concertina, muitos aparecem para o desafiar. Alguns, definitivamente alcoolizados, a tal ponto que mal se percebe o que dizem.
As coisas azedam na tenda quando um toma como alvo uma das mulheres da casa, que há dias que só vê tachos e comida à frente. Um verso fala em “ovelha ranhosa”. Ela abre os grandes e grossos braços, pergunta “é comigo, está a falar de mim, o palhaço?” e aí vai disto, um pano encharcado em sangue assenta nas benfas do cantador malcriado. O burburinho acabará em gargalhadas mas a desgarrada transfere-se para o exterior.
“Isto é como uma luta de galos em que o que souber mais da vida do outro e conseguir fazer rir a plateia acaba por ser o melhor”, explica Carlos Matos, outro viciado, perdão, aficcionado. As rivalidades entre eles os cantadores e tocadores são mais que muitas. “Numa romaria puxa-se muito pela concertina e cada um tem o seu afinador. A gente discute quem tem o melhor afinador, por exemplo”.
Entre todas as romarias do Alto Minho, a de São João D'Arga e a sua noitada louca em plena serra de Arga, perto de Caminha e Vila Praia de Ãncora, é a que mais atrai os amantes das concertinas e desgarradas. Chegam a ser 300 concertinas a tocar toda a noite por entre as tendas, à mistura com muita aguardente com mel. “Uma vez, comecei a tocar lá às nove da noite e só acabei às 5h00 da manhã. Rebentei a concertina e passei oito dias com as mãos inchadas”, conta um veterano.
A noite de sábado para domingo nas Feiras Novas está para durar. Milhares e milhares de pessoas circulam, tentam circular, entre as tendas, roullotes, diversões, bandas filarmónicas, concertinas, num mar de cabeças interminável iluminado pelas luzes feéricas das decorações. De repente, vindo do outro lado do rio, estala na madrugada o fogo de artifício, recortando o perfil da multidão que se acotovela na ponte. Para o pessoal das desgarradas, o troar dos foguetes é mais um familiar som de fundo. “Eu já te tinha dito, eu já te tinha dito...”, canta Pedro, enebriado pelo cantar da concertina, peloo alcool, pelas mil luzes da noite morna e festiva, o assador de Quim Caxadinha a enviar pelo ar fiapos de lume.
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3 comentários:
Toda parte do mundo tem suas belezas encantadoras. Em Paraty-RJ temos belezas e histórias maravilhosas, venha conferir www.rpmparaty.blogspot.com (024) 99183213 Adriano
depois de tantos Kms, chegar a PTL no dia das Feiras Novas é uma verdadeira sorte.
Adorei o teu blog e a tua aventura.
grandes desgarradas! Claro está os inconfundíveis Cachadinha!
www.canaverdeblog.blogspot.com
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