Em Abril de 2009, estava pelas Termas de São Pedro do Sul a preparar-me para subir a Serra de São Macário quando recebi uma mensagem amiga: “Se vais à Aldeia da Pena, não deixes de visitar ao lado Covas do Monte. Há para lá mais de 2.500 cabras”. Nunca tinha ouvido falar na aldeia, desconhecia inclusivamente que já lá tinha sido filmado um documentário, “Névoa no Vale” de Victor Salvador.
Obssecado com o isolamento já muito mediatizado da Aldeia da Pena, trepei a serra com a lousa e pedra da aldeia da “menina da Pena” no cérebro. Cirandei pela capela e deixei-me pairar indeciso no planalto, em frente às placas. Não havia volta a dar-lhe, um halo de curiosidade envolvia-me. Deixei a Pena para os dias seguintes, evitei o Portal do Inferno e segui planalto fora até uma longa e prolongada descida em direcção a Covas do Monte. Uma carrinha de caixa aberta passou por mim e uns locais saudaram-me num misto de hospitalidade e admiração. A meio da encosta, o dorso da montanha elevando e enrugando dos lados de Arouca, duas vacas arouquenses deram-me as boas vindas. Estava, ainda mal sabia, a entrar no território particular e especial de Covas do Monte. Uns qulómetros mais adiante, as cabras começaram a aparecer como pipocas, a saír de todos os lados, evadidas de estevas e urzes e pedernias, atravessando a estrada à minha frente, espreitando por entre os rails.
Só avistei a aldeia já bem no fundo do vale, depois de largar um pinhal. As casas, em pedra e lousa, encaixavam-se umas nas outras, palha e fezes de cabras pelas ruas. Ao contrário de muitas povoações remotas que tinha visitado, em Covas do Monte encontrei mais de 50 habitantes. Os mais velhos sentavam-se no centro da aldeia, cajados na mão, enquanto os mais jovens andavam no vale, na lavoura, tratando do milho que haveria de crescer meses mais tarde. Os aldeãos olharam para a minha mochila com curiosidade e timidez e ofereceram-me um lugar entre eles para me sentar.
Falámos do universo exterior como algo longínquo e nebuloso. Afinal, São Pedro do Sul está ali a 25 quilómetros mas do outro lado do mundo, das curvas e contra-curvas da estrada de São Macário, que de Inverno se cobre de neve e torna a passagem ainda mais difícil. Lisboa, então, é distante e o euro é como se não existisse. Alguns nunca saíram dali. “Eu trabalhei na Oeiras e na Odivelas, a construir dois liceus, sofri muito mas agora nunca mais lá fui, são muitos contos, dizem...”, contou-me um idoso.
Estava a fazer-se tarde, caminhara todo o dia. Perguntei onde poderia dormir. “No chão”, respondeu um habitante, sorrindo, “chão e ar é que não falta por aí”. Acenei com a cabeça, os músculos das pernas a pedirem-me uma solução rápida. Palha saía de uma casa ameaçando ruína. De vez em quando- homens e mulheres observando-me e sorrindo- um silêncio rural envolvia-nos a todos. Até que chegou aquela altura do dia em que a luz começa a querer desaparecer por detrás do Portal do Inferno e o frio abate-se sobre o vale, encolhendo e retraíndo toda a gente. Uma idosa pegou num molhe de lenha e abalou para casa.
Foi então que elas, as cabras, começaram a chegar. Vinham em bandos, indistintas mas sabendo exactamente a que porta haveriam de bater e recolher. Apesar de serem às centenas, descendo a rua principal, enchendo o ar com o som inevitável dos chocalhos, os habitantes pareceram pouco entusiasmados. Tanto as cabras, naquele aparente caos comunitário, conheciam os seus donos como cada aldeão sabia quais eram as suas: “Olha, lá vêm as minhas”.
No dia seguinte, conheci grande parte do segredo e vitalidade rural de Covas do Monte: José da Cruz, presidente da Junta de Freguesia. Como muitos portugueses, emigrou para França. Trabalhou e viveu em Paris, como motorista e a esfaltar estradas. Um dia, o falecido pai pediu-lhe que regressasse. Em Maio do ano passado, mantinha na aldeia um dos filhos. Cerca de dez jovens da aldeia ainda viajavam todos os dias até São Pedro do Sul para irem à escola, 25 quilómetros de montanha para cada lado. Ao contrário de outras aldeias esvaziadas em redor, Covas do Monte mantinha a chama titubeante do mundo rural ainda acesa. “Que piada vai ter um dia você chegar ali acima, ao Portal do Inferno e só ver estevas e uma mancha castanha onde agora é tudo verdinho?”, perguntou- me José da Cruz antes de me ir embora.
DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
24/09/10
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