Nos solitários e pouco conviviais dias da semana, quando atravesso localidades desérticas do interior, posso apreciar a fachada, a escadaria e a envolvente de muitas capelas e igrejas mas dificilmente posso entrar e apreciar o interior. O património histórico religioso está entregue a uma máquina burocrática estatal que classifica mas não tem dinheiro para manter e proteger convenientemente. Sem verba para funcionários e o advento do roubo indiscriminado de arte sacra, as chaves dos locais de culto e de um espólio turístico-religioso riquíssimo fica a maioria das vezes na mão de populares, devotos e carolas.
Em Maio de 2009, atravessei o “Vale Encantado” de Tarouca. Num vale verdejante, entalado entre serras, com mosteiros, igrejas e uma proximidade estratégica com Lamego e o Douro, o concelho tem tudo para ser visitado.Curiosamente, o património que pude visitar com maior facilidade foram as Caves da Murganheira. Tirei a mochila, pedi para visitar e de um momento para o outro encontravam-me entre paredes de granito azul e garrafas, muitas garrafas de espumante.
Igrejas e Mosteiros, esses, é toda uma outra história. Em São João de Tarouca, o mosteiro estava entregue a António Vieira Caetano, 72 anos, que durante anos trabalhou em lojas de vestuário lisboetas como a alfaiataria Rosa & Teixeira. Um dia, António regressou à terra natal e decidiu tratar do mosteiro. “Foi um chamamento divino”, contou-me, “quando cheguei em 1977 o Mosteiro tinha as portas abertas, estava sem telhado, tinha os azulejos descolados e esculturas em terracota desfeitas”.
António Caetano, além de cicerone do Mosteiro de São João de Tarouca, era um contador de histórias: “Uma vez um ex-presidente da Junta de Freguesia apontou-me uma pistola porque queria construir habitação junto ao mosteiro e eu opus-me. Já faleceu, Deus o tenha em descanso”.
Para ajudar a preservar o monumento nacional, António Vieira Caetano chegou a colocar jovens de ocupação dos tempos livres a cortar paus para escorar as talhas. Durante o governo de António Guterres, o mosteiro sofreu grandes obras de restauração alegadamente devido aos apelos insistentes de António. “O Guterres veio cá , eu estava ali ao fundo e ele perguntou: Onde está o senhor Caetano, esse herói, que eu quero dar-lhe um abraço”.
Enquanto atravessava a região, deparava-me com histórias semelhantes. Em Salzedas, por exemplo, era o padre António Teixeira quem lutava pela preservação da Igreja Matriz, das Ruínas da Abadia Velha e apelava à conservação do bairro judeu da localidade. “A judiaria de Salzedas é a nossa jóia da coroa e está a caír aos bocados. É uma peça única. Temos aqui um bairro judaico intacto, diferente de Belmonte. Aqui o bairro funcionava em gueto, as casas comunicavam uma com as outras. Pode-se circular por 40 habitações em circuito fechado, sem vir à rua”, explicou-me.
Em Salzedas, encontrei o padre António Teixeira, entre a celebração de um casamento, a necessidade de guiar uma excursão à Abadia e a venda de artesanato, muito do qual tem a ver com as abadias dos Monges de Cister.
Antes de Salzeda e antes da Murganheira...passara em Ucanha para procurar a Dona Rosa, durante muitos anos a anfitriã da célebre Torre da povoação e hoje quem guarda a Igreja Matriz. Ucanha, o rio Varosa bordejado por salgueiros e amieiros, os campos de milho, olivais e vinhas tendo como pano de fundo a Serra de Santa Helena, é uma jóia preservada pelo projecto “Aldeias Vinhateiras do Douro”.
Como muito do nosso património, a Torre de Ucanha esteve durante muito tempo entregue ao vento. “Estava abandonada e eu botei-lhe a mão”, contou-me Rosa de Jesus, 74 anos Foi ela que
durante mais de 20 anos cuidou da Torre Fortificada e da Igreja Matriz de Ucanha. “Tratei daquilo, fiz lá um pequeno museu com coisinhas agrícolas, fazia as limpezas e explicava as pessoas a História da Torre. Eu não sei ler mas fui aprendendo com os turistas. Para o fim parecia um papagaio, sei tudo de cor”. A Torre passou a ser a razão de viver da mãe de 11 filhos. “Era como a se a Torre fosse minha. Recebia louvores dos turistas no livro de visitas…”
Em 2001, Rosa de Jesus foi substituída pelo turismo local. “Foi como uma facada nas costas. Eu fazia aquilo por orgulho, prazer, por paixão”. Sem entender o afastamento, Dona Rosa adoeceu. “Estive em depressão e em tratamento. Então, eu estava acostumada a estar a fazer o comer e apagar o lume para ir atender os turistas…”
Sem a “sua” Torre, Rosa de Jesus continuou a tomar conta da Igreja. Não me deixou ir embora de Ucanha sem visitar a Igreja Matriz. Estava fechada, sim, mas ela tinha a chave. Num ápice, ultrapassámos a sobriedade granítica do exterior. Não estava preparado para a riqueza brutal da talha dourada dos retábulos, para a beleza enorme dos caixotões pintados do tecto. Apercebi-me da presença de um casal de turistas ingleses no exterior e chamei-os. Traziam um livro que lhes servia de guia. Expliquei-lhes que por sorte a Igreja Matriz estava aberta e que fecharia mal a Dona Rosa regressasse a casa. Entraram. A mulher soltou um : “Oh meu Deus!” Ficaram extasiados. Queriam saber coisas, muitas coisas, em inglês. Dona Rosa respondia em inglês e eu tentava traduzir para português. Por momentos fui quase guia turístico. Um guia do nosso património semi-abandonado.
DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
24/09/10
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário