DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com

09/12/09

QUANDO A GARRAFA ME DEITOU AO CHÃO

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Bom, esta é a parte do Portugal a Pé que nunca desejei escrever. Talvez por isso esteja a redigir directamente na página, para que seja mais rápido e doa menos. Sempre bebi, umas vezes mais, outras vezes menos. O facto de ter um país de alcoólicos debaixo dos meus pés fez-me estremecer as pernas. Começou por ser um festival gastronómico de perceves e aguardente de medronho e reserva de Lagoa no Algarve e continuou por aí acima, à medida da viagem. Provei os vinhos da região de Moura em Moura, os de Portalegre em Portalegre e entrei e saí de tudo o que é restaurante regional. Aos poucos, comecei a caminhar de manhã e a beber e comer da parte da tarde, em locais tão improváveis quanto belos. Tirava verdadeiro prazer disso: Parar num restaurante de estrada, a metros do Douro, ficar a beberricar e escutar os locais a falar da distância entre as vinhas, da última visita dos fiscais, beneficiar da hospitalidade das empregadas de tez rosada e olhar puro do campo, a limpar as mãos às batas antes de sorrir e perguntar com os dentes todos: "Então, o que vai ser?"
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No meio de tanta hospitalidade, perdi-me. Durante a semana, as aldeias desertas, os disponíveis são normalmente os desocupados, prontos a ciceronar o forasteiro mas a serem os primeiros a convidar ao primeiro copo. Fui-me perdendo aos poucos, entre dicas de locais a visitar e adegas visitadas. O Nuno Marçal, grande bibliotecário-ambulante de Proença-a-Nova deu-me uma dica mas eu, na minha cegueira de viandante de celebração em celebração e convívio em convívio, não lhe dei ouvidos. Disse-me: "Eu digo sempre que o meu médico não me deixa beber..."
O alcool é muito bem vindo entre amigos mas na estrada há ratoeiras, especialmente quando o consumo aumenta. Numa aldeia perto da Guarda, já alcoolizado, enfrentei uma sublevação geral porque estava a tirar fotografias à empregada enquanto ela servia vinho do garrafão. Um idoso levantou-se de bengala na mão e gritou: "Ou paras já de tirar fotografias ou levas um enxerto de porrada!" Ao fim de 15 minutos, aldeões que não tinham presenciado a cena asseguravam a pés juntos que se fosse com eles me partiam a máquina.
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Em Vale de Cambra, acabei mais de uma noite a rastejar nas escadas da pensão e com sorte lá acertava na cama. Uma noite, tropecei e parti um candeeiro, acordando um vizinho de quarto, separado da minha chinfrineira apenas por um tabique. "Q'é que se passa aqui?"
Nas Termas de São Pedro do Sul, almoçava só num restaurante com vista para um melancólico e idílico Vouga quando o meu sonho termal e bucólico terminou com a entrada de um grupo repentino de comensais. Que queriam comer e depressa, que iam para o casamento ali defronte- a música já se fazia ouvia estridente em todo o balneário- e que a comida viesse ou se de preferência que já lá estivesse. Achei estranho quererem almoçar se íam para a boda mesmo no hotel em frente mas deixei a minha coluna vertebral entortar-se de irritação com as conversas:Facturação para ali, gastos para acolá, dispensa de trabalhadores, que o imobiliário é que está a dar. Eram eles a falar e eu a beber. A dado momento, a proprietária pediu delicadamente aos comensais que retirassem as viaturas (uma com mais cilindrada que a outra) da área dos táxis. Achei-os patos bravos, mais feios, porcos e maus que os protagonistas do Ettore Scola. Na minha alcoolémia, sorri-lhes covardemente ao abandonar o restaurante mas na realidade odiei cada centímetro daquela converseta de betão e tubagens e do gajo porreiro para facilitar na transação.
Acabei a beber whisky num bar em madeira à beira rio. Quando passei de novo pelo casamento, entrei. Porquê? Estava bêbedo. Entrei e tirei duas fotografias à mesa carregada de bolos e vitualhas. Um senhor veio educadamente pedir para eu saír. Saí e fui provocado por um produto da região, daqueles seres grandes, bochechas muito vermelhas e mãos calejadas que só nos surgem à frente quando estamos indefesos e bêbedos. Mandei-o aquela parte. Nesse dia, só não fui parar ao hospital porque era sábado e as termas estavam repletas de forasteiros que me acudiram quando eu, deitado no chão, levava pontapés do homem, do grande: "Chamaste-me filho da puta, estragaste o casamento". Atrás dele, na nuvem conturbada da minha alcolémia, consegui ver mulheres, homens, jovens, vindos da boda, num chinfrim que a atoarda fazia parecer lá longe. Se tudo aquilo se estava a passar comigo, era num mundo etéreo, vago, onde cada palavra ecoava de modo estranho, como de dentro de um poço.
No dia seguinte, corado de vergonha das raízes do cabelo às unhas dos pés, peguei na mochila e pus-me ao caminho. Umas senhoras passaram por mim: "Você está bem? Estava tudo do seu lado...Como é que aquele monstro pôde ser tão covarde para lhe bater assim? Vai-se embora? Não vá, fique e fique de cabeça erguida!"
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Fiquei mais um dia nas Termas de São Pedro do Sul, já uma segunda-feira, os comerciantes observando-me circunspectos, a minha auto-estima de rastos. Até que no dia seguinte peguei na mochila e só acabei em Covas do Monte, em plena Serra de São Macário. Quando me sentei no banco de madeira comunitário onde os aldeões se sentam à conversa enquanto não chegam as cabras, pensei que ali sim, estava onde queria e devia estar.
O alcool ainda me perseguiu Montemuro acima. Andei a cambalear de aguardente com mel enquanto fotografava e filmava uma chega de bois. "Estavas cá com uma chiba", comentou no dia seguinte um conhecido. Para o fim, os efeitos da caminhada juntamente com o alcool produziam-me muitas dores musculares e cãimbras. Besuntava-me cada vez mais com pomada para as dores. Até que em Penedono, resolvi pedir ajuda. A 17 de Agosto entrei numa comunidade terapêutica de onde saí há um mês. Agora, além de jornalista, reporter e viandante, sou um alcoólico. Sento-me agradecido na cadeira que estendem para mim nas reuniões dos A.A. e digo: "Olá, sou o Nuno, sou alcoólico". Em recuperação. Sempre. Que a doença está a cada esquina.
De modos que se o Portugal a Pé já tinha algo de busca do Portugal de que eu gosto, aquele sem shoppings nem parques de estacionamento nem frachisings, agora passa a ter um pouco mais de espiritualidade. Posso chegar à próxima etapa no cimo da próxima serra ou na próxima curva de uma linha de comboio abandonada e rezar em voz alta a oração da serenidade: "Senhor, Dai-me Serenidade Para Aceitar as Coisas que Não Posso Modificar..."
Nuno Ferreira
 
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