Os olhos do Ti Henrique, aliás, Henrique Amaral, 80 anos, brilham quando um a um os espectadores do último Poço da Morte em Portugal descem as escadas e formam uma pequena fila para o cumprimentar. Apesar de, bem ao lado, possuir um pavilhão de espelhos, o Risoterapia, só a adrenalina do fundo poço de madeira o faz vibrar: as acelerações em rodopio, as palmas enquanto gira como um pião enlouquecido e ergue a bandeira nacional de olhos vendados.
“Vou continuar enquanto tiver saúde”, explica o Ti Henrique, em plena confusão das Feiras Novas, a grande romaria de fim de Verão em Ponte de Lima. Nas Feiras Novas, durante três dias, cruzam-se bandas filarmónicas, ranchos de folclore, concertinas, desgarradas, um mar de gente circulando, mal, pelas atracções, pelas tendas de comes e bebes, pelas centenas de barracas e roulottes de feirantes.
Henrique, beirão de Mangualde, é um veterano e um pioneiro, que viu o seu primeiro poço na Feira de São Mateus, em Viseu, há muitos anos. “Eram italianos, eu tinha oito anos e nunca mais esqueci aquilo. Era o que eu queria”. Mais tarde, surgiram os poços nacionais e Henrique começou a aprender e a exibir-se num deles, aos 18 anos. Ainda trabalhou numa esfera da morte, a mesma que mantem arrumada por não ter quem trabalhe nela e aos 40 mandou finalmente construir em São João da Madeira o seu poço.
Na última década, para desgosto de Henrique, a atracção esteve semi-parada até que a SIC o descobriu e transmitiu uma reportagem em horário nobre. “Foi há três anos. O pessoal lembrou-se e começou a querer ver outra vez, muitos trazem os filhos que não conheciam isto”.
Encontrei o quarentão Poço da Morte de Henrique Amaral enfiado a um canto triste da feira. Por momentos, temi que nem viesse a funcionar. “Sim, trabalha”, explicou um determinado Henrique, “há noite, só há noite”. Quando por lá cheguei, atravessadas as luzes feéricas e tentadoras das grandes atracções modernas, jovens em cadeiras de cabelos para o ar, a gritar como possessos e a ser sugados no ar como marionetas, não vi ninguém. Junto à velha bilheteira, nem uma alma.
Aos poucos, vindos não se sabe de onde, foram aparecendo aficcionados acedendo ao chamamento de Henrique ao microfone: “Faça como São Tomé, venha ver para crer”. Alguns, são nostálgicos dos velhos tempos, outros habitués. “Sempre que ele vem a Ponte de Lima, não perco um”, confessa um homem, “só não trouxe o meu miúdo porque tem medo. O velho (Henrique do Amaral) é um espectáculo!”
Afinal, subidas as escadas em madeira, Henrique e Carlos, o seu empregado e colega, acabam por exibir as ruidosas máquinas rodopiantes perante um povo caloroso, que não regateia aplausos. “Obrigado, muito obrigado!”, agradece embevecido, no fundo do poço, o artista, o veterano, vestido com um fato laranja que o faz parecer um octogenário astronauta, 80 anos feitos em Fevereiro.
Apesar da idade, da placa e dos parafusos numa perna, dos maldito ácido úrico e reumatismo, dos pedidos dos familiares, ninguem o consegue tirar dali. Muito menos agora que renovou toda a madeira e parafusos do Poço da Morte: “Está aí madeira para durar mais vinte anos. Se calhar”, diz a rir, “eu é que não duro mais 20 anos”. Apetece dizer: “Dura, então não dura!”. Se depender do optimismo e fé na vida de Henrique, o último dos quatro poços da morte que existiam em Portugal eternizar-se-á, perdurará sempre, como um ícone, um ultimo bastião do que eram e são as nossas feiras. Afinal, o que será das feiras portuguesas sem o seu poço da morte, “ a loucura sobre rodas, o total desprezo pela vida”?
DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
25/09/10
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
3 comentários:
Desde muito novo que sinto uma enorme admiração pelos homens e mulheres que nos fazem "viajar"no abstracto da aventura e da adrenalina, como foram e ainda são alguns dos que vivem esta grande arte de arriscar a vida em cima de uma moto ou de um carro, nas vertiginosas paredes de madeira dos chamados Poços da morte que tanta admiração provocavam nas mentes de quem assistia ao espectáculo. A emoção começava logo no exterior, quando um dos intervenientes montava uma moto de motor a quatro tempos com ecape livre, em cima de uns rolos que lhe permitiam fazer muitas acrobacias de cortar a respiração! Era como que um aperitivo para se desejar ver todo o restante programa. Já no interior do poço, a adrenalina de quem assistia chegava bem forte ao coração quando o artista passava bem junto ao topo da parede onde se encontrava o público! Recordo com muita saudade a sensação das tábuas abanarem quando a moto passava junto a nós! Era e é ainda um espectáculo extraordinário de se ver, não só pela valentia dos que participam nas acrobacias, mas também porque nos faz viver uns minutos numa outra dimensão de vida, em que se esquece por completo, tudo o que nos vai na alma, para simplesmente apreciar aquela verdadeira arte de fazer quase tudo o que se quer, em cima de uma moto! Desde muito novo que sempre tive motos, e ao fim de muitos anos que já levo delas, era uma experiencia que adorava ter: Poder dar umas voltas num poço da morte, nem que fosse só no fundo do mesmo!
Quero deixar aqui o meu apreço e admiração por todos os que ainda ganham a vida arriscando a mesma neste tipo de espectáculo! Um grande abraço para todos vós, deste vosso fã motard de Alenquer.
Vitor Manuel Ferreira.
Bom dia não há ninguém em Portugal que faca estas exibições ou outras pelo país?
Bom dia não há ninguém em Portugal que faca estas exibições ou outras pelo país?
Enviar um comentário