DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
19/07/10
FEIRA DA MALHADA, TENDAIS, CINFÃES (CRÓNICA PUBLICADA NO SITE CAFÉ PORTUGAL-CLICAR PARA LER NO SITE)
Um bruááá envolve o recinto de terra batida. Uma multidão de homens, mulheres e crianças sobressalta-se quando o boi derrotado numa das cinco chegas que fazem parte do programa anual da Feira da Malhada, em Tendais, Cinfães, foge por detrás de uma baliza e desaparece entre as estevas altas e os muros de pedra. Primeiro, um ligeiro frisson, gente a afastar-se, a correr. Depois, o alívio, as gargalhadas. O dono do boi corre de corda na mão. “O boi está é velho e cheio de calor!”
Não tinha qualquer intenção de assistir a mais uma chega de bois nem enfrentar a serra, de barriga cheia com as chegas no Barroso e a minha aventura perigosa no Marão. Sentara-me na esplanada do Café Central, em Cinfães, procurando descansar as pernas dos últimos percursos, das vinhas de Santa Marta de Penaguião até ao calor espesso da Régua, dali pela tortuosa e mal cuidada EN 222 até Resende e mais tarde Cinfães.
Persegui o Douro entre curvas e contra curvas, bermas cobertas de silvas, vinhedos a perder de vista, pés de cerejeira, subidas e descidas que ora me aproximavam de Montemuro ora me levavam ao rio. Parei na melancolia das Caldas de Arêgos, entre o abandono dos edifícios que nos anos 40 do século passado foram animados hotéis e pensões e entre os poucos utentes idosos. Trepei depois até Cinfães desde Porto Antigo, onde embarcações de recreio largam a pequena marina para desfrutar o rio a uma velocidade e custo inalcançável em Tendais.
Na esplanada do Café Central, o dorso das serranias amareladas de Baião a escurecer sob um tecto de nuvens, conversava sobre o eterno estigma da região, a taxa de desemprego, quando me perguntaram: “Não vai ver os bois? Hoje vai toda a gente para a Feira da Malhada”. Lá fui eu.
Tendais, três da tarde de 11 de Julho. Toldos coloridos semeiam a serra, por entre os penedos e a esteva, abrigando famílias inteiras que trouxeram invariavelmente carrinhas de caixa aberta onde transportaram colchões, garrafões, geladeiras. Mais abaixo, cercando o perímetro do campo de futebol de terra batida, fixaram-se as caravanas de comes e bebes. Alguns comerciantes trouxeram mesas corridas de madeira que cobriram de toalhas garridas de plástico. Outros, mais engenhosos, trouxeram caravanas que dispõem de esplanada/varanda metálica montável, o que permite aos foliões assistir ao concurso de gado e às chegas de bois de raça sem largar o lugar.
A um canto da colina pedregosa, enfileiradas como uma caravana do velho oeste, estão as carrinhas e camionetas de caixa aberta que trazem o gado para venda: vacas, cabras, cavalos, até burros. Os homens, chapéus de feltro ou de palha na cabeça, sobem a pequena vereda, calcam a esteva empoeirada, afastam a bosta dos animais e conversam entre si, os bordões fincados no solo. Outros assentam as duas mãos entrelaçadas e calejadas por debaixo do queixo, assentam-nas no pau e para ali ficam: “Oh António, ‘tás a pedir muito...”
Na s tendas brancas da feira, assentes nas cercanias das caravanas de comes e bebes e invadidas pelo fumo engordurado das churrasqueiras, vende-se de tudo, desde albardas, que alguns foliões tentam colocar no pescoço dos amigos, até alfaias agrícolas e pulseiras para o mau olhado: “Quem tiver problemas na vida, deixa de os ter. Quem for bêbedo, não bebe mais vinho!”
Um pouco acima, um homem apregoa de cima de uma caixa aberta cheia de atoalhados: “Tome lá de graça também, tome lá para o seu sogro, pegue lá você, agarre quem puder, tomem lá meus senhores e minhas senhoras, não são cinco, não são dez...”
Muitos homens e mulheres circulam de chapéus de palha na cabeça, preparados para mais um dia de canícula em Montemuro. “Quem é que aguenta o sol numa terra brava e alta destas sem chapéu?”, pergunta-me Messias Correia, 76 anos, o último chapeleiro da freguesia, descendente de uma geração de chapeleiros. “Sabe que a palha é fresca, nada como a palha...”
O boi fugido é apresentado ao povo puxado por uma corda campo de futebol dentro, envergonhado e vexado. O adiantado da hora leva muita gente a bater em retirada, uns vindos de Arouca, outros de Castro Daire, de Marco de Canaveses, de Resende. Todos unidos pela serra, o gado, a folia. Alguns, chapéu de feltro em banda, a deixar ver a testa suada, a camisa desalinhada, já acusam os efeitos da festa. “Pede à tua mulher que te leve o carro, borracho!”
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3 comentários:
O chapeu usado pelas pessoas é de felpo e não de feltro.
obrigado pela correção
Muitos Parabéns pela iniciativa, de facto , a tradicional feira da Malhada não podia estar melhor retratada.
Espero que tenha gostado, da nossa freguesia Tendais, no Concelho de Cinfães, situado entre o Duro e a Serra.
Cumprimentos.
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