Olá
Decidi terminar a minha viagem no fim de semana de 20/21 de Novembro em Cevide, São Gregório, Melgaço. Peço desculpa de ainda não ter actualizado o blog com a minha travessia de Ponte da Barca, Brufe e dos pontos principais do Gerês. Falta ainda o Soajo, Lindoso, Peneda e por fim Melgaço.
Abraço a todos
www.portugalape.blogspot.com
DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
10/11/10
26/10/10
EM ARCOS DE VALDEVEZ
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De nuno fotos |
Imprevistos de vária ordem levaram a que o final da viagem não esteja a ser cumprido nos timings que eu calculei. Em breve, logo que possível, atacarei a Serra Amarela, depois a Serra do Gerês e finalmente, a Serra da Peneda até ao destino final, COVIDE, o lugar mais setentrional de Portugal.
Podem, entretanto, pesquisar qualquer referência a lugares onde passei.
Abraço a todos
Nuno Ferreira
EM ARCOS DE VALDEVEZ (CLICAR PARA LER NO SITE DE CAFÉ PORTUGAL)
Quando Lucinda Pereira, 74 anos, começou a tear monelhas, ainda na freguesia de Vilar do Monte, Ponte de Lima, todo o lavrador que tivesse vacas tinha de as ter. “Nesse tempo, tinha eu 14 ou 15 anos, os animais tinham todos cangas e para aliviar punha-se a monelha na cabeça da vaca. Era para não trilhar. Os mais pobres faziam-nas com um saco velho cheio de palha, os outros encomendavam-nas”.
Lucinda aprendeu a tecer essa espécie de almofada que assentava na canga dos bois com uma senhora das terras de Coura. Fez tantas e durante tanto tempo que lhe perdeu a conta. Quando as cangas perderam o uso e as monelhas levaram o mesmo caminho, Lucinda passou a fazê-las por encomenda.
monelha
“Vendi muitas para o Canadá, para França. Agora já não tenho vista para as trabalhar e já não há material, a lã, o pano, as linhas próprias para elas, a correia”. Hoje há monelhas tecidas por Lucinda Pereira em todo o lado menos em sua casa. “Vendi-as todas”. Encontrei Lucinda e o marido entretidos no trabalho do campo em Grijó, Rio Frio, uma freguesia serrana a uns quilómetros largos do vale onde repousa Arcos de Valdevez. Grijó tornou-se conhecida pela broa de milho premiada em Itália e que atraíu ali jornais e televisões. “Aqui o ar é bom, sim senhor mas a vida do campo é escrava”, explica Lucinda, que continua a viver da lavoura, do milho, das batatas, das ovelhas, do feijão.
Dias antes ainda andava eu pelas margens do Rio Minho, agradecido pelo Outubro ameno e soalheiro. A praça fronteira à Torre do Relógio, em Caminha, enchia-se de espanhóis nas esplanadas, o coloridos das embarcações diluindo nas águas de um azul suave de aguarela. Até Vila Nova de Cerveira, absorvi aquele Minho fronteiriço e mais buliçoso. Foi quando peguei a EN 302 em direcção a Paredes de Coura, que encontrei muito outonal e posta em sossego umas valentes horas mais tarde. No dia seguinte, descendo para as bandas de Arcos de Valdevez é que percebi verdadeiramente que já estava num outro minho, serrano, as aldeias espaçando-se em declives.
No topo do que é hoje conhecido como a Paisagem Protegida do Corno do Bico, percebi o quanto valeu a pena percorrer a 303 para chegar a São Mamede e avistar o vale do Rio Vez lá em baixo. A estrada, essa, continuou a contorcer-se entre as últimas parras das vinhas já amarelecidas e avermelhadas.
De Arcos de Valdevez à bucólica Ponte da Barca é um pulo de não mais de cinco quilómetros, o que separa o Vez do Lima. Em Arcos (nos Arcos, como diz toda a gente) antes de me fazer ao caminho, cruzei respeitosamente a entrada da Igreja da Lapa e fui bater à porta da famosa Tasca do Delfim, um santuário pagão de concertinas do mundo inteiro. “Toquei muito por todo o lado, aqui em Portugal, nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, Venezuela. Só a França fui 220 vezes”, explica sorridente Delfim Amorim “e em todo o lado onde ía comprava mais uma concertina com o dinheiro que ganhava”.
Delfim, que cantou e tocou durante três anos no afamado e turístico Restaurante Três Pontes em Viana do Castelo- “tinha de usar fato e gravata”- ainda é do tempo em que o tocador de concertina era visto como “parolo”: “Porque o indivíduo que aparecia com a concertina ao ombro era o gajo a quem toda a gente pagava uns copos para ouvir a música. Chamavam-lhe parolo”. Hoje, há uma legião de “parolos” de todas as idades e proveniências a fazer da concertina um ex-libris do Alto Minho.
“Deu-se a explosão total. Quando eu era novo alguma vez uma mulher tocava concertina? Hoje, vai-se a um encontro de concertinas, é mulheres, crianças, é incrível. Toda a gente quer aprender e cada vez mais porque a concertina é alegre, levezinha e faz-se gato sapato dela”, explica Delfim.
O tocador largou a estrada e deixa que venham até si, ao santuário. “Larguei por razões de saúde. Sabe que cantar ao desafio faz mal à saúde”, diz, sorrindo. “Ninguém canta ao desafio sem beber. Este ano fui às Feiras Novas (festas de Ponte de Lima) porque fazia 40 anos que lá vou e em 1970 recebi lá o primeiro prémio de cantigas ao desafio. Mas estive lá sexta-feira, recebi um ramo de flores, cantei e toquei, bebi uns copitos e ala dali para fora. Já me aperta a idade!”
Longe do rebuliço das romarias, Delfim Amorim está nas suas sete quintas entre as centenas de fotos de amigos e tocadores que fez pelo mundo e entre a sua colecção de concertinas.
O futuro da família no reino das concertinas ( um filho e uma filha também cantam e tocam) parece definitivamente assegurado. “O meu filho, esse é a melhor coisa que existe”, afirma com um brilhosinho nos olhos. O filho é o Delfim Júnior, líder da banda Império Show. “Há oito dias, no Canadá, meteu 2.700 pessoas num salão onde nem o Quim Barreiros nem o Augusto Canário meteram tanta gente”.
Lucinda aprendeu a tecer essa espécie de almofada que assentava na canga dos bois com uma senhora das terras de Coura. Fez tantas e durante tanto tempo que lhe perdeu a conta. Quando as cangas perderam o uso e as monelhas levaram o mesmo caminho, Lucinda passou a fazê-las por encomenda.
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“Vendi muitas para o Canadá, para França. Agora já não tenho vista para as trabalhar e já não há material, a lã, o pano, as linhas próprias para elas, a correia”. Hoje há monelhas tecidas por Lucinda Pereira em todo o lado menos em sua casa. “Vendi-as todas”. Encontrei Lucinda e o marido entretidos no trabalho do campo em Grijó, Rio Frio, uma freguesia serrana a uns quilómetros largos do vale onde repousa Arcos de Valdevez. Grijó tornou-se conhecida pela broa de milho premiada em Itália e que atraíu ali jornais e televisões. “Aqui o ar é bom, sim senhor mas a vida do campo é escrava”, explica Lucinda, que continua a viver da lavoura, do milho, das batatas, das ovelhas, do feijão.
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De Arcos de Valdevez à bucólica Ponte da Barca é um pulo de não mais de cinco quilómetros, o que separa o Vez do Lima. Em Arcos (nos Arcos, como diz toda a gente) antes de me fazer ao caminho, cruzei respeitosamente a entrada da Igreja da Lapa e fui bater à porta da famosa Tasca do Delfim, um santuário pagão de concertinas do mundo inteiro. “Toquei muito por todo o lado, aqui em Portugal, nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, Venezuela. Só a França fui 220 vezes”, explica sorridente Delfim Amorim “e em todo o lado onde ía comprava mais uma concertina com o dinheiro que ganhava”.
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“Deu-se a explosão total. Quando eu era novo alguma vez uma mulher tocava concertina? Hoje, vai-se a um encontro de concertinas, é mulheres, crianças, é incrível. Toda a gente quer aprender e cada vez mais porque a concertina é alegre, levezinha e faz-se gato sapato dela”, explica Delfim.
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Longe do rebuliço das romarias, Delfim Amorim está nas suas sete quintas entre as centenas de fotos de amigos e tocadores que fez pelo mundo e entre a sua colecção de concertinas.
O futuro da família no reino das concertinas ( um filho e uma filha também cantam e tocam) parece definitivamente assegurado. “O meu filho, esse é a melhor coisa que existe”, afirma com um brilhosinho nos olhos. O filho é o Delfim Júnior, líder da banda Império Show. “Há oito dias, no Canadá, meteu 2.700 pessoas num salão onde nem o Quim Barreiros nem o Augusto Canário meteram tanta gente”.
23/10/10
NO LITORAL DE VIANA (clicar para ler no SITE DO CAFÉ PORTUGAL)
Em dias como o da passada sexta-feira, o céu abate-se sombrio sobre Viana e do lado do Cabedelo, há momentos em que Santa Luzia é mais um exercício de imaginação do que um santuário. Sabe-se que lá está mas oculta por uma toalha cinzenta. Na avenida principal, o grasnar das gaivotas confunde-se com a vozearia alegre de uma excursão de espanhóis ou o troar militaresco de estudantes em capa e batina que gritam “um, dois, três” a um bando de caloiros submissos.
O famigerado alerta laranja desvaneceu-se no sábado. As ruas do centro acordaram lavadas de sol e os turistas puderam acorrer sem sobressaltos aos monumentos da praxe ou sentar-se nas esplanadas a absorver a claridade húmida de Viana do Castelo. Desviei por entre umas gruas e armazéns e fui dar ao molhe norte.
Nesse dia, o mar todo ele era espuma, embatendo furiosamente contra o paredão. A determinada altura, não falta o aviso. Existe ali uma placa que proíbe a passagem devido ao perigo da rebentação. Dois pescadores mais avisados contornaram as rochas, pelo lado esquerdo, evitaram o ponto de rebentação maior e seguiram para os seus pontos de pesca. Um homem jovem parecia brincar com o vaivém perigoso das vagas, deixando-se propositadamente encharcar, num duelo quase suicida com as ondas cada vez maiores. Mais tarde, apercebi-me que o mar já cavara um fosso nas pedras, do lado da cidade e que estar ali seria sempre pura teimosia.
Depois da Praia do Norte, em direcção a Afife, as vagas muito brancas partindo a um, dois metros dos moinhos da Areosa, o Oceano encheu-se de espuma entre o negro dos rochedos, como leite coalhado ou nuvens emergindo entre montanhas. Nesta altura do ano, pouco mais há por ali do que um ou outro pescador ou um casal a namorar as ondas. As praias, esvaziadas de banhistas, enchem-se de gaivotas. Até que surge o perfil solitário do farol de Montedor, semi-escondido das arribas por um matagal de giesta colorida, arbustos rasteiros de amarelos e vermelhos e roxos, mais o cinzento dos que já secaram.
Um pescador aparece e desaparece entre falésias. Mais à frente, a duna morre numa fatia esboroada, hesito continuar pelos seixos. Contorno o litoral pela estrada Valença-Viana, para poder regressar ao mar em Geifa, onde aos poucos vai crescendo no horizonte o perfil da marginal de Vila Praia de Âncora.
Na manhã de ontem, a borrasca para trás das costas, os barcos vermelhos e verdes e azuis chegam à pequena lota numa alegria de faina de Verão. “Tomara a gente no Verão ter tanto peixe como hoje. Há mais peixe que clientes”, desabafa uma peixeira. Na verdade, há muita gente regateando o pescado, protegido do sol de Outubro por guarda-sóis multicoloridos onde pousam desavergonhadas as gaivotas. Os pescadores, terminada a pesca, atravessam a estrada e enfiam-se no Café “Golfinho”, entre os seus, redes e motivos de pesca nas paredes. “Hoje sim, já não pescavamos assim há muito tempo”.
A Praia de Moledo, mais as suas moradias de veraneio, espraia-se até à foz, até ao fim, emoldurada pela Fortaleza da Ínsua e pelo Monte de Santa Tecla. Já na Mata do Camarido, entre os pinheiros, ouço os espanhóis a chegar, os mesmos que mais tarde encherão à hora de almoço a praça junto à Torre do Relógio, em Caminha: “Moledo, es una playa mui preciosa…”
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De nuno fotos |
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Um pescador aparece e desaparece entre falésias. Mais à frente, a duna morre numa fatia esboroada, hesito continuar pelos seixos. Contorno o litoral pela estrada Valença-Viana, para poder regressar ao mar em Geifa, onde aos poucos vai crescendo no horizonte o perfil da marginal de Vila Praia de Âncora.
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07/10/10
"ESTA GENTE NOVA NÃO SE ACREDITA" (clicar para ler no site CAFÉ PORTUGAL)
Nos meses de Inverno, Manuel Fidalgo dos Santos, conhecido como “Manuel do Pau” ou Ti Mané, largava Folgosinho (Gouveia) com mais quatro homens a pé acompanhando um rebanho de mais de 200 cabras e ovelhas até ao Douro, Régua, Sabrosa, Alijó, Vila Real. Levava cinco a seis dias para lá e no final das invernias regressava. “Chegava a levar as crias, borreguitos pequenos, elas a parirem. Para cá, os borregos já vinham grandes”. Uma rez com três a quatro anos já sabia o caminho de olhos fechados. “Tão bem como eu”. Durante os 20 anos em que andou nessas andanças, o Ti Mané dormia à chuva e à neve, embrulhado na manta. “Agora, como podem dizer que a vida 'tá má? Nunca viram o qu' é mau? Querem é fados...”
![DSC00569[1]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_sh7hwn7eDGLAM2cSdyPO1RUSFFb7bXKdc7fu9B6lqAbdlJaazFmokz_hbyaqXgB2RFuMY1piSJ3lDpAEiS5qgNqxPrG04TsKKPxbMEGnGL3wSrGWTrTC4evDuBjai5rvU=s0-d)
Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: “Dizem que estou a inventar”.
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita de foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construíu a sua primeira gaita: “Eramos pastores, eu e os meus irmãos, andavamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita de foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...”
![IMG_9256[1]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_uWO9XbmS56oKpf75DmqrNdHMp23I9iB0771_nwG1CmNRuz1TOIGc-fKD-R3PrSIKhL17FXXof3sXRvTUxLLM4yMJyV1M31x-AioamrSePc-ZxFpI6h1K6TNcsm0rdTx1Q=s0-d)
Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o caír da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: “Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...”
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: “Oh, nos tempos da miséria...” Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
![Antonio+Jose+Ferreira,+Manuel+Carrilho+e+Jos%C3%A9+Ferreira+Cantarinho+(esq+para+dir)[1]](https://lh3.googleusercontent.com/blogger_img_proxy/AEn0k_tZ45IyMvI5EHL-xDdu3bCqxdvLOAQ5dymAbWuTbHX1xSTrHcAvsb6wjNPhyB2LaPLG0PSyXQ6SDfcuJB3r4j7XCNXKUOejjvTdG7BZWn31vWdvTNfll-FtuHC3v46Fiw=s0-d)
“Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?”, perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. “Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco”. António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. “Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...”
Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: “Dizem que estou a inventar”.
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita de foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construíu a sua primeira gaita: “Eramos pastores, eu e os meus irmãos, andavamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita de foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...”
Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o caír da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: “Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...”
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: “Oh, nos tempos da miséria...” Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
“Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?”, perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. “Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco”. António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. “Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...”
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