DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL.
(Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010.
contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
Imprevistos de vária ordem levaram a que o final da viagem não esteja a ser cumprido nos timings que eu calculei. Em breve, logo que possível, atacarei a Serra Amarela, depois a Serra do Gerês e finalmente, a Serra da Peneda até ao destino final, COVIDE, o lugar mais setentrional de Portugal.
Podem, entretanto, pesquisar qualquer referência a lugares onde passei.
Quando Lucinda Pereira, 74 anos, começou a tear monelhas, ainda na freguesia de Vilar do Monte, Ponte de Lima, todo o lavrador que tivesse vacas tinha de as ter. “Nesse tempo, tinha eu 14 ou 15 anos, os animais tinham todos cangas e para aliviar punha-se a monelha na cabeça da vaca. Era para não trilhar. Os mais pobres faziam-nas com um saco velho cheio de palha, os outros encomendavam-nas”.
Lucinda aprendeu a tecer essa espécie de almofada que assentava na canga dos bois com uma senhora das terras de Coura. Fez tantas e durante tanto tempo que lhe perdeu a conta. Quando as cangas perderam o uso e as monelhas levaram o mesmo caminho, Lucinda passou a fazê-las por encomenda.
“Vendi muitas para o Canadá, para França. Agora já não tenho vista para as trabalhar e já não há material, a lã, o pano, as linhas próprias para elas, a correia”. Hoje há monelhas tecidas por Lucinda Pereira em todo o lado menos em sua casa. “Vendi-as todas”. Encontrei Lucinda e o marido entretidos no trabalho do campo em Grijó, Rio Frio, uma freguesia serrana a uns quilómetros largos do vale onde repousa Arcos de Valdevez. Grijó tornou-se conhecida pela broa de milho premiada em Itália e que atraíu ali jornais e televisões. “Aqui o ar é bom, sim senhor mas a vida do campo é escrava”, explica Lucinda, que continua a viver da lavoura, do milho, das batatas, das ovelhas, do feijão.
Dias antes ainda andava eu pelas margens do Rio Minho, agradecido pelo Outubro ameno e soalheiro. A praça fronteira à Torre do Relógio, em Caminha, enchia-se de espanhóis nas esplanadas, o coloridos das embarcações diluindo nas águas de um azul suave de aguarela. Até Vila Nova de Cerveira, absorvi aquele Minho fronteiriço e mais buliçoso. Foi quando peguei a EN 302 em direcção a Paredes de Coura, que encontrei muito outonal e posta em sossego umas valentes horas mais tarde. No dia seguinte, descendo para as bandas de Arcos de Valdevez é que percebi verdadeiramente que já estava num outro minho, serrano, as aldeias espaçando-se em declives.
No topo do que é hoje conhecido como a Paisagem Protegida do Corno do Bico, percebi o quanto valeu a pena percorrer a 303 para chegar a São Mamede e avistar o vale do Rio Vez lá em baixo. A estrada, essa, continuou a contorcer-se entre as últimas parras das vinhas já amarelecidas e avermelhadas.
De Arcos de Valdevez à bucólica Ponte da Barca é um pulo de não mais de cinco quilómetros, o que separa o Vez do Lima. Em Arcos (nos Arcos, como diz toda a gente) antes de me fazer ao caminho, cruzei respeitosamente a entrada da Igreja da Lapa e fui bater à porta da famosa Tasca do Delfim, um santuário pagão de concertinas do mundo inteiro. “Toquei muito por todo o lado, aqui em Portugal, nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, Venezuela. Só a França fui 220 vezes”, explica sorridente Delfim Amorim “e em todo o lado onde ía comprava mais uma concertina com o dinheiro que ganhava”.
Delfim, que cantou e tocou durante três anos no afamado e turístico Restaurante Três Pontes em Viana do Castelo- “tinha de usar fato e gravata”- ainda é do tempo em que o tocador de concertina era visto como “parolo”: “Porque o indivíduo que aparecia com a concertina ao ombro era o gajo a quem toda a gente pagava uns copos para ouvir a música. Chamavam-lhe parolo”. Hoje, há uma legião de “parolos” de todas as idades e proveniências a fazer da concertina um ex-libris do Alto Minho.
“Deu-se a explosão total. Quando eu era novo alguma vez uma mulher tocava concertina? Hoje, vai-se a um encontro de concertinas, é mulheres, crianças, é incrível. Toda a gente quer aprender e cada vez mais porque a concertina é alegre, levezinha e faz-se gato sapato dela”, explica Delfim.
O tocador largou a estrada e deixa que venham até si, ao santuário. “Larguei por razões de saúde. Sabe que cantar ao desafio faz mal à saúde”, diz, sorrindo. “Ninguém canta ao desafio sem beber. Este ano fui às Feiras Novas (festas de Ponte de Lima) porque fazia 40 anos que lá vou e em 1970 recebi lá o primeiro prémio de cantigas ao desafio. Mas estive lá sexta-feira, recebi um ramo de flores, cantei e toquei, bebi uns copitos e ala dali para fora. Já me aperta a idade!”
Longe do rebuliço das romarias, Delfim Amorim está nas suas sete quintas entre as centenas de fotos de amigos e tocadores que fez pelo mundo e entre a sua colecção de concertinas.
O futuro da família no reino das concertinas ( um filho e uma filha também cantam e tocam) parece definitivamente assegurado. “O meu filho, esse é a melhor coisa que existe”, afirma com um brilhosinho nos olhos. O filho é o Delfim Júnior, líder da banda Império Show. “Há oito dias, no Canadá, meteu 2.700 pessoas num salão onde nem o Quim Barreiros nem o Augusto Canário meteram tanta gente”.
Em dias como o da passada sexta-feira, o céu abate-se sombrio sobre Viana e do lado do Cabedelo, há momentos em que Santa Luzia é mais um exercício de imaginação do que um santuário. Sabe-se que lá está mas oculta por uma toalha cinzenta. Na avenida principal, o grasnar das gaivotas confunde-se com a vozearia alegre de uma excursão de espanhóis ou o troar militaresco de estudantes em capa e batina que gritam “um, dois, três” a um bando de caloiros submissos.
O famigerado alerta laranja desvaneceu-se no sábado. As ruas do centro acordaram lavadas de sol e os turistas puderam acorrer sem sobressaltos aos monumentos da praxe ou sentar-se nas esplanadas a absorver a claridade húmida de Viana do Castelo. Desviei por entre umas gruas e armazéns e fui dar ao molhe norte.
Nesse dia, o mar todo ele era espuma, embatendo furiosamente contra o paredão. A determinada altura, não falta o aviso. Existe ali uma placa que proíbe a passagem devido ao perigo da rebentação. Dois pescadores mais avisados contornaram as rochas, pelo lado esquerdo, evitaram o ponto de rebentação maior e seguiram para os seus pontos de pesca. Um homem jovem parecia brincar com o vaivém perigoso das vagas, deixando-se propositadamente encharcar, num duelo quase suicida com as ondas cada vez maiores. Mais tarde, apercebi-me que o mar já cavara um fosso nas pedras, do lado da cidade e que estar ali seria sempre pura teimosia.
Depois da Praia do Norte, em direcção a Afife, as vagas muito brancas partindo a um, dois metros dos moinhos da Areosa, o Oceano encheu-se de espuma entre o negro dos rochedos, como leite coalhado ou nuvens emergindo entre montanhas. Nesta altura do ano, pouco mais há por ali do que um ou outro pescador ou um casal a namorar as ondas. As praias, esvaziadas de banhistas, enchem-se de gaivotas. Até que surge o perfil solitário do farol de Montedor, semi-escondido das arribas por um matagal de giesta colorida, arbustos rasteiros de amarelos e vermelhos e roxos, mais o cinzento dos que já secaram.
Um pescador aparece e desaparece entre falésias. Mais à frente, a duna morre numa fatia esboroada, hesito continuar pelos seixos. Contorno o litoral pela estrada Valença-Viana, para poder regressar ao mar em Geifa, onde aos poucos vai crescendo no horizonte o perfil da marginal de Vila Praia de Âncora.
Na manhã de ontem, a borrasca para trás das costas, os barcos vermelhos e verdes e azuis chegam à pequena lota numa alegria de faina de Verão. “Tomara a gente no Verão ter tanto peixe como hoje. Há mais peixe que clientes”, desabafa uma peixeira. Na verdade, há muita gente regateando o pescado, protegido do sol de Outubro por guarda-sóis multicoloridos onde pousam desavergonhadas as gaivotas. Os pescadores, terminada a pesca, atravessam a estrada e enfiam-se no Café “Golfinho”, entre os seus, redes e motivos de pesca nas paredes. “Hoje sim, já não pescavamos assim há muito tempo”.
A Praia de Moledo, mais as suas moradias de veraneio, espraia-se até à foz, até ao fim, emoldurada pela Fortaleza da Ínsua e pelo Monte de Santa Tecla. Já na Mata do Camarido, entre os pinheiros, ouço os espanhóis a chegar, os mesmos que mais tarde encherão à hora de almoço a praça junto à Torre do Relógio, em Caminha: “Moledo, es una playa mui preciosa…”
Nos meses de Inverno, Manuel Fidalgo dos Santos, conhecido como “Manuel do Pau” ou Ti Mané, largava Folgosinho (Gouveia) com mais quatro homens a pé acompanhando um rebanho de mais de 200 cabras e ovelhas até ao Douro, Régua, Sabrosa, Alijó, Vila Real. Levava cinco a seis dias para lá e no final das invernias regressava. “Chegava a levar as crias, borreguitos pequenos, elas a parirem. Para cá, os borregos já vinham grandes”. Uma rez com três a quatro anos já sabia o caminho de olhos fechados. “Tão bem como eu”. Durante os 20 anos em que andou nessas andanças, o Ti Mané dormia à chuva e à neve, embrulhado na manta. “Agora, como podem dizer que a vida 'tá má? Nunca viram o qu' é mau? Querem é fados...”
Nas minhas caminhadas pelos buracos mais escondidos do país, tenho encontrado muitos Ti Manés, homens idosos, que viveram um tempo e uma crise cem vezes pior que a de hoje e que se riem quando lhes falo das dificuldades actuais. Alguns já se acostumaram a que os mais novos achem as suas histórias exageradas: “Dizem que estou a inventar”.
Austero e empedernido como as pedras das arribas do Douro Internacional, Ângelo Arribas, mestre da gaita de foles, contou-me em Freixiosa, Miranda do Douro, como foi entre muitas dificuldades e pobreza que construíu a sua primeira gaita: “Eramos pastores, eu e os meus irmãos, andavamos aí ao frio, à neve. A música era a nossa única distracção. O meu primeiro tamboril foi feito com pele de coelho aparada com uma lâmina de barbear e os aros foram feitos a partir de uma lata de conservas. A minha primeira gaita de foles foi feita com palhetas de canas de centeio e pele de rato. Se não acredita pergunte aqui ao meu irmão...”
Em Abril deste ano, em Moimenta da Raia, Vinhais, foi-me apresentado um rijo e desassombrado ex-contrabandista, o Ti Fernando de Casares. O Ti Fernando falava sem pejo da realidade daquele tempo, de quando colocavam pedras no rabo dos burros para eles passarem a fronteira sem fazer barulho ou de quando (imagine-se) punham aguardente nos ouvidos dos porcos para eles não chiarem no caminho.
Passava fardos de 40 a 50 quilos entre o caír da noite e o raiar da aurora, tabaco, bacalhau, burros, porcos, cobre, numa época em que grande parte da população se dedicava ao contrabando.
No final de cada história, Fernando virava-se para a pessoa que mo tinha apresentado e comentava: “Agora, nós estarmos a falar do que era aquele tempo, esta gente nova não se acredita...”
Na Amareleja, a 80 quilómetros de Beja e 9 de Espanha, na terra onde os termómetros chegam no Verão aos 47 graus, os mais velhos encolhiam os ombros sempre que lhes falava em crise. A expressão usada era sempre a mesma: “Oh, nos tempos da miséria...” Entre jogatanas de dominó, xito (malha) na praça da Torre do Relógio à tarde, entre um copo de tinto e pedaços de porco preto espetados em palito de madeira, os idosos relembravam tempos muito mais duros.
“Dizem que a vida está má...e no nosso tempo?”, perguntava José Cantarinho, ex-guardador de vacas, ex-empregado de café. “Fui à ceifa para aquelas barreiras de Bucelas que aqui era fraco”. António José Ferreira, companheiro de dominó, fez podas, ceifas, labutou numa fábrica de automóveis em Amiens, na França e aguentou 16 abaixo de zero na Suíça a trabalhar em estufas. Agostinho Caetano, andou nas obras em Lisboa, na beterraba em França e jardinagem na Suíça. “Agora é tudo máquinas. Nos tempos da miséria, uh...”