DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL.
(Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010.
contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
Cheguei aquela parte em que não apetece terminar. Até ando mais devagar. Queria que Portugal fosse maior para poder estender a caminhada. Paciência.
Abraço a todos
Nuno
Quando nos afadigamos a descobrir Portugal a pé nem sempre vemos o que gostaríamos ver. Demasiadas vezes, sinto-me como um intruso na cozinha de um restaurante de segunda categoria, nos bastidores caóticos de um mau espectáculo ou no quintal das traseiras de um vizinho pouco afamado. Vejo o que o Turismo de Portugal nunca poderá exibir, por razões óbvias e que eu próprio preferia não ter observado. Um dia gelado de Fevereiro passado parei, a caminho de Vimioso, não apenas para descansar as pernas doridas mas para alcançar, do alto de uma colina, as águas escuras e rebeldes do Rio Sabor no Inverno. Ao preparar mais uma fotografia, dei com o tal bastidor caótico que preferiria não ter avistado: colchões, tijolos, cadeiras partidas, latas de tinta. Se tivesse passado de automóvel, aperceber-me-ia do deambular do rio ao fundo e do jogo do esconde esconde com os montes transmontanos mas ficaria imune aquelas traseiras indignas.
Mais à frente, desci até às àguas revoltas do Rio Maçãs. O Inverno chuvoso transformara os Sabor, o Tua, o Maçãs em torrentes, caudais rebeldes, a escapulir-se por entre fragas e braços de árvores caídas sem parcimónia. Junto ao Maçãs, avistei entre um punhado de silvas, uma cascata de água tão fria que só a ideia de caír dentro dela me provocou um arrepio na coluna. Culminando na queda de água, existia um ribeiro, água límpida a correr entres musgos e pedras. Foi quando vi a mesa, as pernas de madeira viradas para o ar, como um animal morto de patas para cima- sim, também já tenho o meu pedaço de avistamentos de animais junto à estrada-, as latas de tintas e pasme-se, um frigorífico.
A displicência com que alguns usam ou se servem do nosso património natural chega a ser trágico-cómica. Na Serra da Freita, a caminho da Frecha da Mizarela, encontrei um sofá vermelho que parecia ali ter sido colocado para uma performance, uma sessão de fotos artísticas.
Mal tratada aqui e ali por este lixo doméstico e industrial, a nossa paisagem vive, bastas vezes, nua e desolada, marcada como um animal por um ferro em brasa. Os incêndios devastaram regiões inteiras, mudaram o cenário de tal forma que em Oleiros, por exemplo, os habitantes se queixavam que o clima, sem árvores, deixara de ser temperado e passara a ser seco quanto o de Castelo Branco, na planície. Em Mação, sob uma temperatura de quase 40 graus, um local encolhia os ombros quando lhe falei no risco de incêndio: “Já ardeu tudo...falta arder uns 30 por cento do concelho...”
Quando desci do Fajão para a Barragem de Santa Luzia, no concelho de Pampilhosa da Serra, tudo o que tive como companhia foram as hastes queimadas dos pinheiros que restaram. Na Foz do Cobrão, junto às Portas de Almourão, Proença-a-Nova, fiquei com as calças riscadas de preto ao trepar uma encosta de troncos, hastes ardidas e pedras a resvalar em terreno a esboroar-se. De Colmeal (Góis) a Cepos (Arganil) subi por entre o solo negro e seco e o perfil amaldiçoado de uma floresta ardida. Às vezes, querer “descobrir” as entranhas de Portugal é também um exercício doloroso e triste.
Sempre mantive uma imagem romântica do Alto Minho, paisagem de milheirais, espigueiros e vinhas, entre cantilenas, desgarradas e concertinas. Perto de Ponte de Neiva, avancei por entre o casario até ao litoral para o ver escavacado, a areia substituída por um mar de seixos e pedras, pedregulhos grandes a proteger o portinho de Castelo de Neiva. Andei como um sonâmbulo por entre as redes e armadilhas e o colorido dos barcos dos pescadores mas já com a tristeza ferrada na alma.
A caminho de Ponte de Lima, larguei o fumo branco da Portucel em Deocriste e enveredei pela eco-via. Em Setembro, não é de esperar grande caudal no Lima. Nos campos, alguns apanhavam as espigas dos milheirais. As tonalidades estão longe do verde de outras estações. Este ano, entretanto, as encostas do Alto Minho jazem feridas dos fogos, uma crosta infame de sarna a desfigurar a Serra de Arga. Nem sempre vemos de Portugal o que gostaríamos ver.
“Dá licença que se toque aqui concertina?”, pergunta quase abraçado ao balcão um homem grande e calvo, ombros largos, bigode hisurto, olhar quase fulminante. A resposta da mulher do outro lado da barricada é de enfado silencioso. Aquilo ali é uma pequena pastelaria, não uma tasca e por detrás da grande figura já se vislumbra o perfil do chapéu branco de José Caxadinha, famoso cantador local de desgarradas e, para piorar as coisas, o chapéu de palha do sobrinho Pedro Caxadinha. Entre eles, apesar dos laços familiares, alimenta-se desde há anos uma rivalidade de galos cantantes. Mais do que simples tocadores de concertinas, os dois rivalizam nas deixas e no versejar endiabrado. Pedro é mais novo e ataca o trono de José com a agressividade e sangue jovem de quem pressente ter ainda muitos anos pela frente.
De dentro do balcão, da mulher nem sim nem não mas estamos em plena noite de rusgas nas Feiras Novas, em Ponte de Lima e ninguém terá coragem de dizer que não a mais uma concertina. A desgarrada começa, Pedro sempre ao ataque, o tio mais resguardado junto aos amigos ao balcão. Tal como certamente previra a dona do pequeno estabelecimento, a desgarrada eterniza-se, os clientes que já estavam ficaram mas a entrada bloqueou com uma mole de curiosos que nem entra nem sai. Como uma luta de galos, a parada de versos vai subindo de tom e Pedro vai descobrindo pequenos episódios mais ou menos embaraçantes da vida do tio que provocam as gargalhadas da geral. As hostilidades só terminam quando o homem grande despega do balcão, parece querer cerrar as pálpebras, abre de novo a pestana e com o mesmo olhar sério do início, cai redondo no chão. Os outros homens seguram-no pelos ombros. Alguém se oferece, entre risadas, para o levar a casa e a desgarrada passa para a rua, onde milhares de pessoas cruzam o empedrado naquela que é a noite mais animada, febril das Feiras Novas.
À medida que a noite avança, quase não se consegue circular. Aparecem concertinas e grupos a dançar um pouco por todo o lado. José Caxadinha perde-se, numa esquina movimentada, a cantar ao desafio com outros cantadores, que surgem não se sabe de onde. Um traz a camisa aberta, a garganta oleada pelo alcool. Os olhos do veterano Caxadinha raiam de sangue e brilham como berlindes na noite, todo ele contentamento.
“Eu sou tolo pela desgarrada”, explicar-me-á mais tarde Pedro Caxadinha, numa das tendas de comes e bebes da família. Não é que não goste de tocar concertina mas a adicção está nas cantigas, nas larachas, na interacção com o povo. “Isto já é de raça, de família, aprendi com o meu tio e agora é uma febre. Não perco um encontro de concertinas, uma romaria. Onde houver uma concertina, eu estou lá”.
Para cantar a desgarrada, diz Pedro e afirmam todos, é preciso beber. “É preciso um grão na asa para soltar a imaginação mas tem de se saber beber. Quem bebe demais já não consegue cantar.”Como explica de forma prosaica outro cantador: “Tem de se aguentar de pé, se caíu, já se fodeu todo”.
Na tenda de Quim Caxadinha, onde Pedro assenta arraiais com a sua concertina, muitos aparecem para o desafiar. Alguns, definitivamente alcoolizados, a tal ponto que mal se percebe o que dizem.
As coisas azedam na tenda quando um toma como alvo uma das mulheres da casa, que há dias que só vê tachos e comida à frente. Um verso fala em “ovelha ranhosa”. Ela abre os grandes e grossos braços, pergunta “é comigo, está a falar de mim, o palhaço?” e aí vai disto, um pano encharcado em sangue assenta nas benfas do cantador malcriado. O burburinho acabará em gargalhadas mas a desgarrada transfere-se para o exterior.
“Isto é como uma luta de galos em que o que souber mais da vida do outro e conseguir fazer rir a plateia acaba por ser o melhor”, explica Carlos Matos, outro viciado, perdão, aficcionado. As rivalidades entre eles os cantadores e tocadores são mais que muitas. “Numa romaria puxa-se muito pela concertina e cada um tem o seu afinador. A gente discute quem tem o melhor afinador, por exemplo”.
Entre todas as romarias do Alto Minho, a de São João D'Arga e a sua noitada louca em plena serra de Arga, perto de Caminha e Vila Praia de Ãncora, é a que mais atrai os amantes das concertinas e desgarradas. Chegam a ser 300 concertinas a tocar toda a noite por entre as tendas, à mistura com muita aguardente com mel. “Uma vez, comecei a tocar lá às nove da noite e só acabei às 5h00 da manhã. Rebentei a concertina e passei oito dias com as mãos inchadas”, conta um veterano.
A noite de sábado para domingo nas Feiras Novas está para durar. Milhares e milhares de pessoas circulam, tentam circular, entre as tendas, roullotes, diversões, bandas filarmónicas, concertinas, num mar de cabeças interminável iluminado pelas luzes feéricas das decorações. De repente, vindo do outro lado do rio, estala na madrugada o fogo de artifício, recortando o perfil da multidão que se acotovela na ponte. Para o pessoal das desgarradas, o troar dos foguetes é mais um familiar som de fundo. “Eu já te tinha dito, eu já te tinha dito...”, canta Pedro, enebriado pelo cantar da concertina, peloo alcool, pelas mil luzes da noite morna e festiva, o assador de Quim Caxadinha a enviar pelo ar fiapos de lume.
Os olhos do Ti Henrique, aliás, Henrique Amaral, 80 anos, brilham quando um a um os espectadores do último Poço da Morte em Portugal descem as escadas e formam uma pequena fila para o cumprimentar. Apesar de, bem ao lado, possuir um pavilhão de espelhos, o Risoterapia, só a adrenalina do fundo poço de madeira o faz vibrar: as acelerações em rodopio, as palmas enquanto gira como um pião enlouquecido e ergue a bandeira nacional de olhos vendados.
“Vou continuar enquanto tiver saúde”, explica o Ti Henrique, em plena confusão das Feiras Novas, a grande romaria de fim de Verão em Ponte de Lima. Nas Feiras Novas, durante três dias, cruzam-se bandas filarmónicas, ranchos de folclore, concertinas, desgarradas, um mar de gente circulando, mal, pelas atracções, pelas tendas de comes e bebes, pelas centenas de barracas e roulottes de feirantes.
Henrique, beirão de Mangualde, é um veterano e um pioneiro, que viu o seu primeiro poço na Feira de São Mateus, em Viseu, há muitos anos. “Eram italianos, eu tinha oito anos e nunca mais esqueci aquilo. Era o que eu queria”. Mais tarde, surgiram os poços nacionais e Henrique começou a aprender e a exibir-se num deles, aos 18 anos. Ainda trabalhou numa esfera da morte, a mesma que mantem arrumada por não ter quem trabalhe nela e aos 40 mandou finalmente construir em São João da Madeira o seu poço.
Na última década, para desgosto de Henrique, a atracção esteve semi-parada até que a SIC o descobriu e transmitiu uma reportagem em horário nobre. “Foi há três anos. O pessoal lembrou-se e começou a querer ver outra vez, muitos trazem os filhos que não conheciam isto”.
Encontrei o quarentão Poço da Morte de Henrique Amaral enfiado a um canto triste da feira. Por momentos, temi que nem viesse a funcionar. “Sim, trabalha”, explicou um determinado Henrique, “há noite, só há noite”. Quando por lá cheguei, atravessadas as luzes feéricas e tentadoras das grandes atracções modernas, jovens em cadeiras de cabelos para o ar, a gritar como possessos e a ser sugados no ar como marionetas, não vi ninguém. Junto à velha bilheteira, nem uma alma.
Aos poucos, vindos não se sabe de onde, foram aparecendo aficcionados acedendo ao chamamento de Henrique ao microfone: “Faça como São Tomé, venha ver para crer”. Alguns, são nostálgicos dos velhos tempos, outros habitués. “Sempre que ele vem a Ponte de Lima, não perco um”, confessa um homem, “só não trouxe o meu miúdo porque tem medo. O velho (Henrique do Amaral) é um espectáculo!”
Afinal, subidas as escadas em madeira, Henrique e Carlos, o seu empregado e colega, acabam por exibir as ruidosas máquinas rodopiantes perante um povo caloroso, que não regateia aplausos. “Obrigado, muito obrigado!”, agradece embevecido, no fundo do poço, o artista, o veterano, vestido com um fato laranja que o faz parecer um octogenário astronauta, 80 anos feitos em Fevereiro.
Apesar da idade, da placa e dos parafusos numa perna, dos maldito ácido úrico e reumatismo, dos pedidos dos familiares, ninguem o consegue tirar dali. Muito menos agora que renovou toda a madeira e parafusos do Poço da Morte: “Está aí madeira para durar mais vinte anos. Se calhar”, diz a rir, “eu é que não duro mais 20 anos”. Apetece dizer: “Dura, então não dura!”. Se depender do optimismo e fé na vida de Henrique, o último dos quatro poços da morte que existiam em Portugal eternizar-se-á, perdurará sempre, como um ícone, um ultimo bastião do que eram e são as nossas feiras. Afinal, o que será das feiras portuguesas sem o seu poço da morte, “ a loucura sobre rodas, o total desprezo pela vida”?
AGRADECIMENTO ESPECIAL EM PONTE DE LIMA PARA O LUÍS LIMA E FAMÍLIA. Receberam-me com uma hospitalidade sem palavras numa altura em que descobrir um quarto na zona era como tentar descobrir uma agulha num palheiro. Abraço Luís e família!