DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL.
(Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010.
contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
TERRITÓRIO PERCORRIDO Tenho este projecto há anos: Atravessar o Portugal profundo a pé, de bicicleta ou de autocarro e comboio. Anos de encarceramento na labuta infernal do jornal diário não me permitiram cumprir o sonho mais cedo. Durante mais de 20 anos, fiz pequenas, médias e grandes reportagens. Até cheguei a ter um cartão em cima da minha secretária onde se podia ler: “Fazem-se pequenas, médias e grandes reportagens”. Para mim, uma reportagem sempre foi saír da redacção, ver e ouvir, perguntar o que for preciso, regressar e escrever. O tamanho não conta. Tirei gozo de viagens de camião pela Europa ou através do sertão brasileiro ou de atravessar a Índia de comboio da mesma forma que me entusiasmava com reportagens céleres e marcadas pelo cronómetro da azáfama do diário na Cova da Moura, na Quinta da Fonte ou em incêndios florestais ou urbanos. Atravessei a Route 66, escrevi na revista do Expresso e do Público sobre quase todas as estradas nacionais, sobre a vida e morte da Cândida Branca Flor ou do Vitor Baptista, acompanhei claques de futebol até Itália, enfim...Entrevistei o Jorge Palma,os Xutos, a Diana Krall, Norah Jones, B B King, Coldplay, escrevi sobre country, blues e rock. Morri de tédio em conferências de imprensa, em sessões da Assembleia Municipal, bati milhares e milhares de caracteres de breves noticiosas e rescrevi muitos textos. Estava precisamente a regressar um dia à redacção quando o telemóvel tocou. A administração queria-me convocar para o fim da linha. Tinha 44 anos e estava de acordo com o director do jornal “desmotivado”. Farto de tanta ingratidão, peguei na indemnização e vim cá para fora. Durante três meses, a única coisa que fiz foi passear na praia à frente de casa com o meu husky cego por companhia, o Grishka. Como era Outono, tínhamos a Praia de São João da Caparica para nós. Ali assisti à destruição de uma praia pela força do mar, força essa impelida pela ganância dos homens, que roubaram a areia entre a Cova do Vapor e o Farol do Bugio para levarem para a outra margem do Tejo, a dos ricos, a que está sempre primeiro. Bom, escrevi um livro sobre políticos e limusinas que vendeu dois mil míseros exemplares e que tinha de procurar nas livrarias em secções tão insuspeitas como informática ou turismo- juro que é verdade- e foi então que começou a ruminar-me no cérebro o PORTUGAL A PÉ. Se toda a gente anda a viajar e a escrever sobre todos os cantos do mundo e a publicar em todo o lado, porque não propor a uma publicação crónicas de uma travessia de Portugal a pé? Foi o que fiz. Enviei um mail ao José Cardoso, então editor da “Única” e fiquei à espera. Em Fevereiro de 2008, já eu desesperava, recebi a luz verde do “Expresso”. Em poucos dias, fui à Sport Zone, comprei o essencial para caminhar à chuva, ao sol e ao vento e parti, nervosíssimo, para Sagres, onde decidi começar a aventura. Como só tinha de escrever e enviar fotos uma vez por semana, andei ao meu ritmo, sem qualquer preparação física especial, apenas com o andamento de quem andara a passear o cão na praia livre da Caparica outonal. No primeiro dia, percebi imediatamente que tinha levado carga a mais na mochila- atravessei o Algarve com 15 quilos às costas- e descobri ao fim de três quilómetros o que teria de melhor a minha viagem: A cada canto, em cada esquina, há um português com vontade de conversar, de falar da vida. O meu primeiro amigo foi um empregado de um restaurante de Sousa Cintra, perto do Cabo de São Vicente. Ao fim de meia hora de conversa, olhei para o galhardete do Sporting e disse: “Eh pa, o seu patrão só tem um defeito”. Assim descobri que estava em território de Sousa Cintra. A partir dali, da ventosa Sagres, foi sempre a subir, Portugal acima. Levei com uma enxurrada fenomenal na Bordeira, concelho de Aljezur, barricado num café durante umas duas horas. Acabei a mostrar videos dessa enxurrada aos habitantes. Trepei a minha primeira serra, Espinhaço de Cão, em Março de 2008. Nunca me esquece de um idoso inglês que fotografava a vista do mar lá ao fundo, junto a Monte Clérigo e se saíu com esta: “Quem me dera ter a sua energia”. A partir desse momento, entendi também que seriam pessoas como essas, ao longo de estrada, que me dariam alento para continuar, além das letras do Jorge Palma, da letra “You Never Walk Alone”, das letras do filme “Into The Wild” e do meu gurú Bruce Springsteen. Quando me sinto mais desanimado canto sózinho “Reason To Believe” ou ponho-me a berrar “Sou benfiquista com muito orgulho e muito amor”. Enfim. Já tive algumas ínfimas situações menos agradáveis. Em qualquer país, há sempre umas ovelhas ranhosas plantadas onde menos se espera. Posso estar encantado com uma aldeia brilhante e verdejante num vale, descer os quilómetros de serra que me separam da terra e ser mal recebido. Aconteceu uma vez ou outra mas, adiante. Como não posso trazer a palavra jornalista escrita na testa, já passei por cigano, vagabundo, potencial ladrão, peregrino a fátima. Na Serra do Caldeirão, um aldeão viu-me a passar e exclamou: “Atão, nem uma bicicleta tem?” Respondi que tinha dois carros em Lisboa. O homem ficou a olhar para mim de boca aberta. Já tive várias povoações com a respectiva população a olhar pasmada para mim, como quem diz: “Que é que faz aqui este maluco, desgrenhado, de mochila às costas?” Quando sabem que sou jornalista, alguns pedem desculpa: “O senhor sabe, anda para aí tanta malandragem, não sabíamos quem você era”. Recentemente, numa zona bravia mas sadia do norte, um habitante aconselhou-me vivamente a cortar o cabelo e fazer a barba: “O pessoal daqui não gosta de gente com brinco ou cabelo comprido. Homem, você está sujeito a levar um enxerto de porrada”. Entrei imediatamente numa barbearia nostálgica e embebida em melancolia numa rua estreita, sentei-me na cadeira de um barbeiro ensimesmado e triste, paguei seis euros e saí um homem novo. Tenho feito muitas amizades, se elas perdurarão ou não, não sei. Nunca mais esqueço a dona de uma loja de artesanato em Alte, no Algarve, que sempre repetia: “Você não vai conseguir, não acredito. Portugal a pé? Com esse peso às costas? Não acredito...” Não dá para esquecer os poetas populares do Alentejo, a rimar só para mim nem aquele taxista de Coimbra, que me levou ao meu ponto de re-partida, Góis, e de cinco em cinco minutos batia no tablier e exclamava: “E cum caralho, cum caralho, Portugal a pé, você é um corajoso do caralho”!. E o taxista de Castro Daire que me foi buscar às Portas de Montemuro depois de um corta-mato furioso serra acima: “Foda-se, você é um herói do caralho. Se ganhasse o euromilhões ía consigo!” Em Penedono, o dono de um bar propôs juntar-se a mim na travessia um pouco arriscada da linha do Douro, onde o comboio ainda passa e é preciso encostarmo-nos às pedras ou junto ao rio. Estava por alturas de Belver quando liguei para o “Expresso” e me comunicaram que devido a uma remodelação na revista “Única” as minhas crónicas deixariam de ser publicadas em Setembro de 2008. Contei os meus tostões e decidi continuar, apesar de deixar de ter subsídio de desemprego. Criei então este blog e fui à luta. Pedi patrocínios mas a crise está primeiro. Desde que as minhas crónicas cessaram no “Expresso” e enveredei por colocar o meu material na internet, fiquei mais pobre mas passei a ter muito feedback, a receber mensagens de apoio e só Deus sabe como elas são importantes quando se está sózinho a atravessar a Beira Alta, para dar um exemplo recente. “Você pensava que isto aqui era tudo plano? Isto aqui é o distrito de Viseu, é só serras, subir e descer”, explicou-me um beirão em Moimenta da Beira. De acordo com os meus planos, ainda tenho para calcorrear Trás-os-Montes pelo Tua, depois inflectindo para Freixo de Espada a Cinta, Miranda do Douro, Bragança e Montesinho, Chaves e Montalegre. Sonho em descer por Terras de Basto, atravessar o Parque do Alvão e o Marão, voltar ao Douro, inflectir para o Grande Porto e conquistar o Minho até ao meu destino final de sempre: Lamas de Mouro, na Serra da Peneda. Um abraço a todos e não se esqueçam de enviar mensagens positivas, que eu agradeço!!!
Bom, esta é a parte do Portugal a Pé que nunca desejei escrever. Talvez por isso esteja a redigir directamente na página, para que seja mais rápido e doa menos. Sempre bebi, umas vezes mais, outras vezes menos. O facto de ter um país de alcoólicos debaixo dos meus pés fez-me estremecer as pernas. Começou por ser um festival gastronómico de perceves e aguardente de medronho e reserva de Lagoa no Algarve e continuou por aí acima, à medida da viagem. Provei os vinhos da região de Moura em Moura, os de Portalegre em Portalegre e entrei e saí de tudo o que é restaurante regional. Aos poucos, comecei a caminhar de manhã e a beber e comer da parte da tarde, em locais tão improváveis quanto belos. Tirava verdadeiro prazer disso: Parar num restaurante de estrada, a metros do Douro, ficar a beberricar e escutar os locais a falar da distância entre as vinhas, da última visita dos fiscais, beneficiar da hospitalidade das empregadas de tez rosada e olhar puro do campo, a limpar as mãos às batas antes de sorrir e perguntar com os dentes todos: "Então, o que vai ser?" No meio de tanta hospitalidade, perdi-me. Durante a semana, as aldeias desertas, os disponíveis são normalmente os desocupados, prontos a ciceronar o forasteiro mas a serem os primeiros a convidar ao primeiro copo. Fui-me perdendo aos poucos, entre dicas de locais a visitar e adegas visitadas. O Nuno Marçal, grande bibliotecário-ambulante de Proença-a-Nova deu-me uma dica mas eu, na minha cegueira de viandante de celebração em celebração e convívio em convívio, não lhe dei ouvidos. Disse-me: "Eu digo sempre que o meu médico não me deixa beber..." O alcool é muito bem vindo entre amigos mas na estrada há ratoeiras, especialmente quando o consumo aumenta. Numa aldeia perto da Guarda, já alcoolizado, enfrentei uma sublevação geral porque estava a tirar fotografias à empregada enquanto ela servia vinho do garrafão. Um idoso levantou-se de bengala na mão e gritou: "Ou paras já de tirar fotografias ou levas um enxerto de porrada!" Ao fim de 15 minutos, aldeões que não tinham presenciado a cena asseguravam a pés juntos que se fosse com eles me partiam a máquina. Em Vale de Cambra, acabei mais de uma noite a rastejar nas escadas da pensão e com sorte lá acertava na cama. Uma noite, tropecei e parti um candeeiro, acordando um vizinho de quarto, separado da minha chinfrineira apenas por um tabique. "Q'é que se passa aqui?" Nas Termas de São Pedro do Sul, almoçava só num restaurante com vista para um melancólico e idílico Vouga quando o meu sonho termal e bucólico terminou com a entrada de um grupo repentino de comensais. Que queriam comer e depressa, que iam para o casamento ali defronte- a música já se fazia ouvia estridente em todo o balneário- e que a comida viesse ou se de preferência que já lá estivesse. Achei estranho quererem almoçar se íam para a boda mesmo no hotel em frente mas deixei a minha coluna vertebral entortar-se de irritação com as conversas:Facturação para ali, gastos para acolá, dispensa de trabalhadores, que o imobiliário é que está a dar. Eram eles a falar e eu a beber. A dado momento, a proprietária pediu delicadamente aos comensais que retirassem as viaturas (uma com mais cilindrada que a outra) da área dos táxis. Achei-os patos bravos, mais feios, porcos e maus que os protagonistas do Ettore Scola. Na minha alcoolémia, sorri-lhes covardemente ao abandonar o restaurante mas na realidade odiei cada centímetro daquela converseta de betão e tubagens e do gajo porreiro para facilitar na transação. Acabei a beber whisky num bar em madeira à beira rio. Quando passei de novo pelo casamento, entrei. Porquê? Estava bêbedo. Entrei e tirei duas fotografias à mesa carregada de bolos e vitualhas. Um senhor veio educadamente pedir para eu saír. Saí e fui provocado por um produto da região, daqueles seres grandes, bochechas muito vermelhas e mãos calejadas que só nos surgem à frente quando estamos indefesos e bêbedos. Mandei-o aquela parte. Nesse dia, só não fui parar ao hospital porque era sábado e as termas estavam repletas de forasteiros que me acudiram quando eu, deitado no chão, levava pontapés do homem, do grande: "Chamaste-me filho da puta, estragaste o casamento". Atrás dele, na nuvem conturbada da minha alcolémia, consegui ver mulheres, homens, jovens, vindos da boda, num chinfrim que a atoarda fazia parecer lá longe. Se tudo aquilo se estava a passar comigo, era num mundo etéreo, vago, onde cada palavra ecoava de modo estranho, como de dentro de um poço. No dia seguinte, corado de vergonha das raízes do cabelo às unhas dos pés, peguei na mochila e pus-me ao caminho. Umas senhoras passaram por mim: "Você está bem? Estava tudo do seu lado...Como é que aquele monstro pôde ser tão covarde para lhe bater assim? Vai-se embora? Não vá, fique e fique de cabeça erguida!" Fiquei mais um dia nas Termas de São Pedro do Sul, já uma segunda-feira, os comerciantes observando-me circunspectos, a minha auto-estima de rastos. Até que no dia seguinte peguei na mochila e só acabei em Covas do Monte, em plena Serra de São Macário. Quando me sentei no banco de madeira comunitário onde os aldeões se sentam à conversa enquanto não chegam as cabras, pensei que ali sim, estava onde queria e devia estar. O alcool ainda me perseguiu Montemuro acima. Andei a cambalear de aguardente com mel enquanto fotografava e filmava uma chega de bois. "Estavas cá com uma chiba", comentou no dia seguinte um conhecido. Para o fim, os efeitos da caminhada juntamente com o alcool produziam-me muitas dores musculares e cãimbras. Besuntava-me cada vez mais com pomada para as dores. Até que em Penedono, resolvi pedir ajuda. A 17 de Agosto entrei numa comunidade terapêutica de onde saí há um mês. Agora, além de jornalista, reporter e viandante, sou um alcoólico. Sento-me agradecido na cadeira que estendem para mim nas reuniões dos A.A. e digo: "Olá, sou o Nuno, sou alcoólico". Em recuperação. Sempre. Que a doença está a cada esquina. De modos que se o Portugal a Pé já tinha algo de busca do Portugal de que eu gosto, aquele sem shoppings nem parques de estacionamento nem frachisings, agora passa a ter um pouco mais de espiritualidade. Posso chegar à próxima etapa no cimo da próxima serra ou na próxima curva de uma linha de comboio abandonada e rezar em voz alta a oração da serenidade: "Senhor, Dai-me Serenidade Para Aceitar as Coisas que Não Posso Modificar..." Nuno Ferreira