DIÁRIO DE VIAGEM DO JORNALISTA NUNO FERREIRA (EX-EXPRESSO, EX-PÚBLICO) QUE ATRAVESSOU PORTUGAL A PÉ ENTRE FEVEREIRO DE 2008 E NOVEMBRO DE 2010. O BLOG INCLUI TODAS AS CRÓNICAS PUBLICADAS NA REVISTA "ÚNICA" EM 2008, BEM COMO AS QUE SÃO PUBLICADAS SEMANALMENTE NO SITE CAFÉ PORTUGAL. (Travel diaries of Nuno Ferreira, a portuguese journalist who crossed Portugal on foot from February 2008 to November 2010. contact: nunoferreira62@gmail.com ou nunocountry@gmail.com
15/11/08
14/11/08
DIOGO, VENDEDOR DE CASTANHAS DE VIDEMONTE, EM FERRO
Diogo é um dos três jovens que restam na aldeia de Videmonte, na vertente oriental da Serra da Estrela. Estuda em Belmonte mas naquele dia está ali para ajudar os pais na venda da castanha. "Isto 'tá mau, fraquito. Antigamente, ainda havia umas fabriquitas que empregavam algum pessoal. Fecharam, o pessoal teve de emigrar. Qualquer dia não há aí ninguém". Um rapaz que vende carpetes por detrás de Diogo esfrega as mãos para afastar o frio. Há horas que 'tá ali a tentar vender um tapete: "Está mau? Está péssimo. O pessoal não tem dinheiro. Veja como eles já vêem de mãos nos bolsos. Se não fosse irmos para Espanha vender, morríamos à fome..."
FEIRA DA CASTANHA, FERRO
COVILHÃ
A Covilhã foi o meu poiso de fim de semana, de adaptação ao frio da serra, entre arroz de carqueja, um "Quinta dos Currais" tinto, uma movida universitária feita de shots e gritaria à noite por detrás do edifício da câmara. Ainda tive paciência para ir a uma discoteca e assistir a umas pirotecnias baratas de fogo realizadas por um rapaz em tronco nú e magrinho. Quando saí para a rua, dei com ele de novo em tronco nú ao frio da Covilhã. Perguntei-lhe se não tinha frio. Respondeu-me com um: "Meu, não tens um cigarro?"
EÓLICAS ENTRE SOBRAL E ALVOCO DA SERRA
SOBRAL DE SÃO MIGUEL
Naquele dia, às quatro da tarde já era praticamente de noite quando finalmente entre curvas e contra-curvas, subidas e descidas cheguei exausto a Sobral de São Miguel. Não perdi muito tempo ali porque estava obcecado em chegar à estrada para Unhais da Serra e Covilhã o mais depressa possível. Mas não pude deixar de parar quando passou por mim um homem de boné na cabeça, a arrastar um carrinho de mão com lenha e sempre a cantar. Parou de cantar quando me viu. Pedi-lhe que continuasse a cantar, o que o deixou encantado: "É Quim Barreiros. Gosto muito de Quim Barreiros. É meu amigo. Já o vi em Gouveia, é meu amigo, até já me deu quatro pares de sapatos".
A CAMINHO DE SOBRAL DE SÃO MIGUEL
PEREIRO, ENTRE SÃO JORGE DA BEIRA E SOBRAL DE SÃO MIGUEL
AS NUVENS
"BOA TARDE SENHOR ENGENHEIRO"
A Barragem de Santa Luzia está um pouco como o país, em baixa forma, as margens desnudadas pela seca. Não chove, há pouca água e o Casal da Lapa e o seu pequeno aglomerado de cafés e restaurantes jaz desértico, frio, feio, ventoso. Trepo até à Portela d'Unhais, decido a embrenhar-me pelas curvas solitárias de uma das paisagens mais solitárias de Portugal. Na cabeça, levo ainda o artigo de Nuno Francisco que lera no “Jornal do Fundão” de 6 de Novembro. No concelho que atravesso, o de Pampilhosa da Serra vivem 5. 220 pessoas em 396 quilómetros quadrados de serranias. No 12º ano, estudam 4 alunas, uma das quais faz todos os dias 50 quilómetros para se deslocar de Malhada do Rei até à sede do concelho.No exame nacional de Matemática, apenas um aluno participou. Obteve 6,5. Logo, a média da escola no ranking nacional foi de 6,5, a pior do país. O dia virá em que a escola não constará no ranking e provavelmente nem será precisa porque não existirão alunos. Viro costas à desolação e trepo serra acima, entre camiões que transportam brita para a beneficiação do troço de estrada que segue de Portela d' Unhais em direcção à Barroca Grande, às Minas da Panasqueira e a São Jorge da Beira. No topo da serra, passo por uma placa que me dá as boas vindas ao concelho da Covilhã. É então que, de repente, avisto lá bem em baixo o casario em filas brancas das minas da Panasqueira. Quem vê a Barroca Grande posta em sossego procura imaginar os dias em que ali trabalhavam milhares de homens. Agora, num dia cinzento e tristonho, desço junto à estátua do Jesus Operário e atravesso ruas imersas em silêncio.
No restaurante das minas, o “Gasómetro”, encontro uma lareira acesa, uma mãe jovem debruçada sobre uma criança numa alcofa e uma mesa ocupada por...engenheiros. Trocam amarguras, decepções, algumas maledicências. “Isto é aquela mentalidade conservadora em que as pessoas olham só para quanto custa e não para quanto vai valorizar”, diz um. “Olhe, uma coisa é manutenção, outra requalificação. Nós estamos aqui para manter as máquinas a andar. O engenheiro mais jovem não se conforma: “Ninguém acredita no benefício que a limpeza das máquinas pode trazer...” Ouço falar em vagões, compressores, válvulas, acumuladores, travagem. Tento decifrar a mensagem como quando ouço uma língua estrangeira que me não é familiar. A mulher jovem interrompe: “Vai querer o café pingado, senhor engenheiro?” O homem olha para uns capacetes amarelos que escondem as lâmpadas que mal alumiam a sala e responde impaciente: “sim, sim”. Alguém ali, não naquela mesa mas na mina, é “incompetente”: “Mas já falaste com ele?” O engenheiro jovem: “Estou farto de falar, diz-me sempre para pôr os compressores a trabalhar e prontos...” Alguém se sai com uma tirada filosófica: “Muitas vezes atrás de um gajo porreiro vem um gajo menos porreiro mas que é mais respeitado”. O jovem engenheiro de barba rala parece o mais nervoso. Levanta-se, algo exasperado. “Boa tarde senhor engenheiro”, cumprimentam as mulheres, numa reverência quase beata. A porta fecha-se. Ouve-se a voz de um homem: “Aparece aqui cada amostra! Este deve ter falsificado a idade para vir para aqui...”
Subscrever:
Mensagens (Atom)